Uma história
Ana sorriu para o seu reflexo no espelho. Ajeitou o vestido, verificou a maquilhagem, endireitou as costas. A rapariga da imagem era linda, com o cabelo louro até meio das costas, cuidadosamente ondulado, os olhos puramente verdes e enormes definidos por lápis preto e um rímel que alongava as sua pestanas perfeitamente. Não que alguma vez se tivesse achado feia, mas assim estava perfeita. Passou a língua por uns dentes brancos e muito direitos por falta de hábito de não ter o aparelho.
Por momentos, deixou a ansiedade sobrepor-se à vaidade. «Ele deve estar quase a chegar», pensou. Borrifou um pouco mais de colónia, vestiu o casaco, pegou na mala e olhou mais uma vez para o espelho. O sorriso de prazer voltou, mas desapareceu quando ouviu a campainha. Ouviu a voz da mãe a chamá-la. Sacudiu o cabelo e bateu as pestanas. Desceu as escadas o mais lento possível, para o deixar sofrer um pouco. Quando chegou aos últimos degraus, via o pai com a máquina fotográfica na mão a falar com o seu par, a mãe a ralhar com um irmão que mandava mensagens, parando alguns segundos para levantar os olhos para a mãe, acenando com a cabeça.
Todos os olhares se viraram para ela. A mãe susteve a respiração, exclamando de seguida um balbuciado «estás tão linda, filha!». Ana dirigiu-lhe um sorriso meigo. Depois, olhou para o par que a esperava. Tiago observava-a de boca aberta, os olhos azuis celestes esbugalhados. Ele estava muito bem , pensava ela. Muito bem mesmo, concluía ao observar o namorado. Tinha o cabelo preto cuidadosamente despenteado e o seu fato preto com uma camisa azul aberta em V, da mesma cor do seu vestido. Colocou-se ao lado dele, que se baixou para lhe plantar um beijo na testa.
A seguir, o flash da câmara enevoava-lhes os olhos, despediam-se dos seus pais e saíam de casa. Ele abriu-lhe a porta do carro para que ela entrasse e depois dirigiu-se ao lugar do condutor. Ao sentar-se, Tiago passou-lhe lentamente a mão pela face, ao que ela respondeu com um sorriso enorme.
1 ano e meio, pensava Ana, durante a viagem. Tinha passado tão depressa. Mas ele estava tão calado...
- Preparada ?- disse ele, como se lhe tivesse ouvido os pensamentos.
- Penso ... Sim. Sim, estou. - respondeu ela, afastando todas as dúvidas da sua mente.
- Ainda bem.- estacionou o carro e abriu a porta, mas não saiu, parecendo que algo o tinha prendido ao banco. Após alguns segundos de indecisão, fixou o olhar nela, sorriu-lhe meigamente e disse:
- Vou fazer desta a noite com que sempre sonhaste.
Ela riu-se baixinho. Ele saiu do carro e abriu-lhe a porta, ela saiu e, mal fechou a porta, encostou-a contra o carro e deu-lhe um longo beijo.
Afastou a boca da dela, mas apenas o suficiente para poderem os dois respirar. Depois, deu-lhe um sorriso lento e provocador.
- Vamos, beleza. Há um baile à nossa espera.
Ela seguiu-o, entusiasmada e com medo de onde a noite poderia acabar. Mas todas as suas preocupações desapareceram ao entrar no salão de baile. Durante o baile, dançaram, conversaram, sorriram e divertiram-se imenso.
À saída, iam ambos com o cabelo desalinhado, sorridos parvos chapados nas caras, as mãos dadas e o peito cheio memórias.
Já dentro do carro, sentaram-se exaustos e baixaram a capota para poderem observar as estrelas e o luar.
- Acreditas que já passou o nosso Baile de Finalistas?- disse ela.
- Próximo ano, Universidade. Parece que a vida passou tão depressa.
- Exato ...
- 1 ano e meio, querida.
Ela sorriu. Voltou a cabeça para ele e descobriu que ele já a estava a fitar há algum tempo.
O seu sorriso esmoreceu. E ficaram assim os dois a fitarem-se durante o que lhes pareceu horas.
- Amo-te, Tiago.
Ele fez um esgar de surpresa. Nunca esperaria que fosse ela a dizê-lo primeiro. Mas tinha sido. E quando viu o olhar nervoso dela, apercebeu-se de que já estava paralisado há algum tempo. Como resposta, pegou nela e pô-la no seu colo. Beijou-a lentamente. Depois, encostou a testa à dela. Ela afastou-o, olhando-o com os olhos penetrantes e um meio sorriso nos lábios.
- Sabes que isso não serve de resposta, não sabes ?
Ele suspirou.
- Teimosa.
Ela sorriu-lhe.
- Não desvies o...
Antes que ela acabasse, já ele a puxava para um novo beijo. Afastou a boca dela da sua bruscamente e, abanando-a levemente, disse:
- Sabes perfeitamente que és a melhor coisa que já me aconteceu. Amo-te tanto, miúda. Não imaginas o quanto.
O olhar desorientado dela, por causa da rapidez dos movimentos dele, transformou-se num olhar vazio.
Ele olhou-a, confuso. Ela puxou-o para si, beijando-o e começando a desapertar-lhe a camisa. A resposta do corpo dele foi instantânea. Ela até se assustou com a reação dele, mas só afastou os lábios dos dele para o observar e sorrir até os dele encontrarem o caminho para os dela outra vez.
Enquanto ele lhe beijava o pescoço, ela olhava para o céu, sorrindo ao imaginar como a noite acabaria. Tal como ela queria. Soltou uma pequena gargalhada, quando ele se debatia com o vestido dela. Depois, olhou para baixo para se ocupar com o botão das calças dele.
******
Ana abriu os olhos. Um som regular chamou-lhe à atenção. Levantou ligeiramente a cabeça para se situar. O peito nu de Tiago debaixo da sua cabeça. O som era provavelmente o seu coração. Bancos de trás do carro. Caramba, como raio tinham chegado ali? Sorriu quando a sua mente lhe lembrou como.
Estava óbvia e convenientemente nua. Espetacular. Ainda era de noite, talvez 6 da manhã.
Ao mexer o pé, sentiu uma dor lancinante. Mexeu-o outra vez, e descobriu que não era só o pé mas todo o seu corpo a partir da cintura. Olhou com mais atenção para o céu. O seu olhar transformou-se em pânico, ao perceber o porquê da escuridão. Um eclipse. A dor espalhou-se por todo o seu corpo, como se estivesse a ser queimada viva. Baixou a cabeça, fechou os olhos e contraiu os músculos. Só fez pior. Tornava-se insuportável. Parou de respirar porque lhe doía. As lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces, atingindo o peito nu de Tiago. Este dormia profundamente. Ela gritou perante as dores excruciantes, mas sabia que ele não a conseguia ouvir. Na sua cabeça, alguém gritava também da mesma dor, mas muito longe, noutro planeta, noutro Universo.
Ela cerrou os dentes, e rezou para que tudo aquilo passasse depressa. Mas um pensamento deteu-lhe as preces, pois sabia que quando tudo aquilo acabasse, ela já não poderia estar à beira de Tiago.
Seria demasiado perigosa para estar à beira de seja quem fosse.
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