Antecipação

O tempo passa demasiado depressa.
Ouço os pés a bater na terra, o marchar poeirento e rítmico, o barulho de aviões.
Consigo cheirar o enxofre, e nele o teu perfume.
Consigo ver o verde manchado. Consigo ver o teu rosto transformado em mármore duro. Consigo ver os teus olhos vazios.
Consigo sentir-me a correr na tua direção, o meu estômago a embrulhar-se, um nó a formar-se na minha garganta.
Consigo sentir o orgulho a palpitar-me debaixo da pele. Consigo sentir o meu rosto a contrair-se num sorriso. Tu viras-te e já não és o mesmo. Já não me sorris. Os teus braços abrem-se, num gesto mecânico e coordenado. Corro para eles, até os meus pés já não sentirem o chão.
E, quando finalmente me vejo envolvida naqueles membros que me sabem a casa, que me sabem a ti, começo a reparar nos pequenos pormenores. Na falta de brilho nos teus olhos. No sorriso frio. Nos traços do teu rosto, antes tão abertos, tão doces, tão teus. E agora tão mortos.
Consigo ouvir a falta de promessas, a falta de palavras. Consigo ver a tua ânsia em te afastares. Consigo ver-me a afastar-me. Consigo ver-me a ver-te desaparecer na poeira de onde são gritadas ordens desenfreadas.
O tempo passa tão depressa ... E cada segundo se desvanece tão facilmente. O segundo em que me disseste durou anos. Os segundos que passo contigo nem sequer existem.
E sofrer por antecipação é das piores coisas que há. Mas pior ainda é conseguir imaginar cada fração de segundo das despedidas, cada fração de segundo em que a tua voz estará fria e distante ao telemóvel, cada noite que eu passarei embalada pelas lágrimas.
A quantidade de noites que eu passarei a não querer dormir porque nos meus sonhos te terei de volta e acordar será demasiado penoso. A quantidade de noites que eu passarei a rezar e a implorar aos Céus para que estejas são e salvo.
Nunca pensei que fosse ficar assim. Já era esperado. Já se sabia. E, no entanto, não havia maneira de saber. O meu coração nunca há de acreditar.
Ouço o rebentar silencioso de uma bomba.
Os sinos da Igreja.
O preto a atravessar a rua.
Ouço os meus gritos interiores para que tudo aquilo seja mentira, um pesadelo.
E depois, entre a minha infinita e incalculável angústia, eu acordo.
Acordo a hiperventilar. E acordo a desejar que estivesses deitado a meu lado.

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