Ricochete

Calço os sapatos com o tacão mais alto que tenho.
Levanto-me e dou uma volta em frente do espelho.
Solto o meu cabelo e espalho-o uniformemente.
Fito o reflexo dos meus olhos e sorrio por ver o quão negros e vazios parecem.
Ensaiei a mesma expressão de sempre, repleta de seriedade e até hostilidade. Levantei o queixo orgulhosamente e sorri ligeiramente. Carreguei o meu sorriso de escárnio, de ódio, de desprezo.
Por vezes pergunto-me se preciso mesmo de toda a minha atitude. De toda a acidez. E poucos minutos depois vejo as expressões nos rostos. E as expressões tiram-me do meu pedestal, tornam-me pequenina. Portanto relembro a mim própria que estou de tacões e volto a espetar o queixo.
Não importa o que eu faça. Podia vestir-me de maneira diferente, encher o meu rosto com os sorrisos abertos e tímidos que tanto desprezo e agir de maneira diferente.
Mas as expressões nos rostos deles não mudariam. O facto de não me verem como uma pessoa não mudaria. Não teria sossego.
Portanto ponho um pé à frente do outro, levanto o queixo e ignoro os olhares, os sorrisos, os franzir de sobrolho. Mantenho a expressão mais cega de arrogância que tenho. Deixo em cada passo marcado pelo som dos tacões o rasto do meu ódio. E espero que a minha indiferença, que a minha insensibilidade, que o meu orgulho transpareçam. Espero que a minha atitude se sinta a quilómetros, que a minha acidez lhes derreta os ossos.
E depois, depois de atravessar aqueles degradantes corredores que me diminuem, sorrio. Esboço o mais perfeito dos rascunhos de um sorriso cheio de autossatisfação. Rodo os ombros subtilmente e inspiro profundamente.
E volto a ser eu, do alto dos meus tacões, outra vez.

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