Marcas

Passo a mão pela folha para sentir a marca das letras, das palavras. Como se delas transbordassem tudo o que eu quero dizer, tudo o que disse. Tudo o que senti.
''Senti a alma gelar.
Os meus olhos esbugalharam-se, a minha respiração acelerou para cortar a sensação. Pousei a mão no peito como se pudesse evitar o derradeiro impacto que aí viria. Senti a antecipação das lágrimas.
Fechei o ecrã violentamente. Pensei que isso fosse melhorar a situação, mas em nada ajudou. Desliguei as luzes. No escuro não me conseguiria ver, não conseguiria sequer imaginar o meu rosto desfeito.
Deitei-me na cama em busca do consolo, como tantas vezes já tinha feito. Nela procurava abandonar-me, deixar-me levar pelas ondas agudas de dor no meu peito.
Fiz força para chorar, mas as lágrimas não vinham. Tentei fingir que não existia, tentei deixar o meu corpo desgastado na Terra e retirar-me do meu agoniado espírito. Queria deixar de falar, de ver, de ouvir. De ouvir principalmente, porque o som dos meus próprios gemidos enlouquecia-me.
E ali, no meu antro escuro de tortura e de solidão, vieram-me aos olhos imagens de quando o meu coração não estava partido. Depois vieram-me aos ouvidos palavras destruidoras. E, por fim, bailou-me na mente a imagem de uns olhos negros, os meus, deitados naquela mesma cama, naquela mesma escuridão, há tantos meses, fixos no vazio, a sangrarem de desilusão.
Indignada com essa imagem, levantei-me bruscamente e liguei a luz. Pontapeei tudo o que no chão jazia.
Movida pela raiva atirei o animal inanimado para fora do meu antro. Assim já não havia mais nada dele ali, nada dele em mim.
Senti o meu coração envolver-se numa redoma mais alta que a minha solidão. Debaixo da minha pele o sangue fervia.
Louca de raiva, abri a janela. Dirigi o meu rosto distorcido ao céu, que gradualmente escurecia. O ar fresco esfriava o meu espírito. A minha raiva arrefecia, também, e solidificava.
No céu vi o rosto que queria marcado. Sorri, de forma malévola. Rogar-lhe pragas não chegava. Queria que ele desaparecesse. Que evaporasse. Que o nome dele nunca mais fosse pronunciado, que o cheiro dele se extinguisse.
Assim fiquei, talvez por minutos, talvez por horas até que o meu sorriso se evaporou. Tal como a minha raiva.
Fechei a janela.
Deitei-me na cama, subitamente exausta graças à minha combustão espontânea. Desejei poder dormir para sempre.
De olhos pesados, adormeci.
Nos meus sonhos, tudo estava de volta. Nos meus sonhos fui eu que o expulsei, fui eu que expulsei a toxicidade, a infelicidade. Nos meus sonhos disse adeus de vez.
Mas, passadas infinitas horas de ilusões, o meu despertador tocou.
Abri os olhos, cegos de sono. Quando ganhei total consciência, encolhi-me.
Encolhi-me à espera da dor e da tristeza. À espera que o impacto fosse tão grande que parasse de respirar.
Mas o impacto não veio. Vi-me, no entanto, mergulhada numa indiferença profunda.
Passei o dia com uma sensação desconhecida no peito. Sensação que reconheço agora, de volta ao meu antro.
É ardor. O peito arde-me. Debaixo de toda a indiferença, o peito arde-me.
De quê?
De desilusão. De absoluta, triste, agoniada, gritante, desilusão.''

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