A Música

Dia 68:
''... Eu não preciso te olhar pra te ter em meu mundo, porque aonde quer que eu vá, você está em tudo, tudo, tudo o que eu preciso... Te vivo...''
A música ecoa nas paredes fechadas do meu quarto. De pernas cruzadas, deitada na cama, fitava o vazio de olhos cheios. Cheios de memórias, cheios rancores, cheios de sonhos, cheios de dores.
Todos os traços do meu rosto poderiam contar a minha história. A óbvia e banal história por detrás da música que ecoava repetidamente nas paredes do meu quarto. Já não a ouvia há meses. Lembro-me de não a conseguir apagar. Da minha mente, do meu computador ou do meu telemóvel.
A música mergulhou-me em enormes poços de saudade. Se bem que, desta vez, não sabia do que tinha saudades. Podia ser das noites frias em que eu me dirigia a casa de espírito quente. Podia ser do bater descontrolado do meu coração, quando os olhos dele me trespassavam, quando as mãos dele me percorriam incessantemente. Podia ser da sensação de absoluta confiança, de dependência e independência, de ter com quem falar após um longo dia. Podia ser de ter quem me amasse apesar do meu feitio.
O meu coração partia-se a cada nota. Talvez fosse disso que tinha saudades. Talvez fosse por isso que não conseguia dormir. Talvez tivesse saudades de adormecer de coração partido, agarrada ao animal inanimado.
Pelo menos na altura eu conseguia dormir. Agora limito-me a olhar fixamente o teto, com a mente bem longe do meu quarto, da minha casa, da minha rua.
''Quando me sinto só te faço mais presente...'' - dizia a música pela milionésima vez.
Não me queria atrever a fechar os olhos. Debaixo das minhas pálpebras esperavam-me recordações demasiado vívidas. Perguntei-me se nos olhos dele também bailava o cansaço, a exaustão, eu. Um pequeno sorriso irrompeu no meu rosto. Ele podia pensar em mim, eu acreditava que ele o fizesse, mas duvidava que ele tivesse noites de irónicas insónias, nas quais aqueles seis meses estavam vivos e presentes.
Mas o raios de sol acabavam por irromper nas janelas. O meu despertador acabava por tocar. Eu acabava por me levantar, de olhos negros e solenes.
E tudo o resto voltava a estar morto. Tal como nós, tal como os meus olhos.
Suspirei e tentei não me desfazer ao ouvir o último sussurro da música:
''Te vivo...''

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