The Lady
Dia 162:
A mulher no espelho sorri-me, radiante. Os cabelos de um loiro negro brilham, os olhos pretos resplandecem, a tez morena contrasta com os lábios perfeitamente delineados, pintados de um vermelho contundente, que se abriam num sorriso que mostrava os dentes brancos. O prazer que retirei de cada segundo daquela auto-observação foi um tanto ou quanto doentio. Estava de volta. Não me lembrava da última vez em que a visão de mim própria me tinha preenchido por completo os sentidos. O meu amor-próprio pelos vistos não tinha qualquer mácula, eu estava impecável e pronta. Foi, no entanto, um choque ao perceber que, pela primeira vez desde sempre, eu parecia uma mulher. Não uma menina, não uma miúda, não uma rapariga. Uma mulher. Acredito que já tenha passado várias vezes por uma, mas nunca me tinha realmente sentido como uma. Achei que só esse pormenor, só essa visão, ia ser o suficiente para a noite que se sucederia ser um sucesso. Devo-me ter esquecido que essa noite era para eu ser jovem, não adulta.
Os meus movimentos entorpecidos acompanhavam os energéticos dos outros. Tentávamos ser jovens, felizes, imortais. Éramos, de facto, jovens, pelo menos eles eram. Eu apenas tentava passar por jovem.
O entorpecimento dos meus movimentos acabavam por me levar a uns braços. Nem sempre eram os mesmos, mas havia uns que estavam sempre abertos. Na minha cabeça esses braços não eram da pessoa a que realmente pertenciam. Eram de um sussurro do passado, infinitamente fortes e protetores.
Debaixo daquela noite estrelada consegui, mais uma vez, anestesiar-me. Fazendo o que sempre faço, correndo para a substância líquida que contém toda a minha coragem e ousadia e para os braços alheios. Infelizmente desta vez não eram simplesmente os braços alheios. Desta vez, para além dos braços que se estendiam para mim, estendia-se também uma pessoa. Não foi o que aconteceu da última vez.
Achei que me conseguiria suportar sozinha, ignorar as tonturas e o enjoo e continuar em frente, a divertir-me, a sorrir e sozinha. Quero desesperadamente estar sozinha. O que é algo ridículo de dizer dado que nos últimos 162 dias tudo o que quis foi não ficar sozinha. Não estar só com os meus pensamentos, demasiado aterrorizadores e devastados para eu os conseguir suportar. Mas nesta noite, nesta noite estrelada e sem lua, nesta noite fresca verão, eu apenas quis estar sozinha. E não o conseguia porque parece que, mesmo passado todo esse tempo, ainda preciso de um analgésico forte o suficiente para me fazer esquecer por umas horas. Para me fazer esquecer as mágoas, para me fazer esquecer aquilo que há 162 dias atrás me envenenou por inteiro.
O veneno só recentemente me abandonou mas eu ainda o sinto a percorrer as minhas veias, a escurecer-me as entranhas. Agora esse ''veneno-fantasma'' só me traz cansaço, um cansaço tão forte que me faz querer entrar num sono profundo e nunca sair dele. Este cansaço é um sintoma físico e é precisamente o que eu pretendo esquecer. Quero estar viva, não eternamente exausta.
Feliz ou infelizmente, não tenho mais sintomas emocionais. Não tenho mais emoções, aliás. Tenho pequenos vestígios delas, mas não as tenho. Daí serem tão prejudiciais os braços alheios. Porque eu não vou sentir aquilo que preciso para ficar neles. Eu não vou sentir absolutamente nada.
A mulher no espelho sorri-me, radiante. Os cabelos de um loiro negro brilham, os olhos pretos resplandecem, a tez morena contrasta com os lábios perfeitamente delineados, pintados de um vermelho contundente, que se abriam num sorriso que mostrava os dentes brancos. O prazer que retirei de cada segundo daquela auto-observação foi um tanto ou quanto doentio. Estava de volta. Não me lembrava da última vez em que a visão de mim própria me tinha preenchido por completo os sentidos. O meu amor-próprio pelos vistos não tinha qualquer mácula, eu estava impecável e pronta. Foi, no entanto, um choque ao perceber que, pela primeira vez desde sempre, eu parecia uma mulher. Não uma menina, não uma miúda, não uma rapariga. Uma mulher. Acredito que já tenha passado várias vezes por uma, mas nunca me tinha realmente sentido como uma. Achei que só esse pormenor, só essa visão, ia ser o suficiente para a noite que se sucederia ser um sucesso. Devo-me ter esquecido que essa noite era para eu ser jovem, não adulta.
Os meus movimentos entorpecidos acompanhavam os energéticos dos outros. Tentávamos ser jovens, felizes, imortais. Éramos, de facto, jovens, pelo menos eles eram. Eu apenas tentava passar por jovem.
O entorpecimento dos meus movimentos acabavam por me levar a uns braços. Nem sempre eram os mesmos, mas havia uns que estavam sempre abertos. Na minha cabeça esses braços não eram da pessoa a que realmente pertenciam. Eram de um sussurro do passado, infinitamente fortes e protetores.
Debaixo daquela noite estrelada consegui, mais uma vez, anestesiar-me. Fazendo o que sempre faço, correndo para a substância líquida que contém toda a minha coragem e ousadia e para os braços alheios. Infelizmente desta vez não eram simplesmente os braços alheios. Desta vez, para além dos braços que se estendiam para mim, estendia-se também uma pessoa. Não foi o que aconteceu da última vez.
Achei que me conseguiria suportar sozinha, ignorar as tonturas e o enjoo e continuar em frente, a divertir-me, a sorrir e sozinha. Quero desesperadamente estar sozinha. O que é algo ridículo de dizer dado que nos últimos 162 dias tudo o que quis foi não ficar sozinha. Não estar só com os meus pensamentos, demasiado aterrorizadores e devastados para eu os conseguir suportar. Mas nesta noite, nesta noite estrelada e sem lua, nesta noite fresca verão, eu apenas quis estar sozinha. E não o conseguia porque parece que, mesmo passado todo esse tempo, ainda preciso de um analgésico forte o suficiente para me fazer esquecer por umas horas. Para me fazer esquecer as mágoas, para me fazer esquecer aquilo que há 162 dias atrás me envenenou por inteiro.
O veneno só recentemente me abandonou mas eu ainda o sinto a percorrer as minhas veias, a escurecer-me as entranhas. Agora esse ''veneno-fantasma'' só me traz cansaço, um cansaço tão forte que me faz querer entrar num sono profundo e nunca sair dele. Este cansaço é um sintoma físico e é precisamente o que eu pretendo esquecer. Quero estar viva, não eternamente exausta.
Feliz ou infelizmente, não tenho mais sintomas emocionais. Não tenho mais emoções, aliás. Tenho pequenos vestígios delas, mas não as tenho. Daí serem tão prejudiciais os braços alheios. Porque eu não vou sentir aquilo que preciso para ficar neles. Eu não vou sentir absolutamente nada.
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