Recordação ambulante

O ambiente passou de escuro e frio para festivo e cheio. As vozes animadas do espaço transformavam tudo em luz e calor. O cheiro a bolos e café impregnava o ar e criava uma aura de refúgio do frio que se enfrentaria lá fora.
Era cedo para esse tipo de constatações. Em fins de setembro o tempo não estava frio, apenas cinzento e frustrante. Mas dentro daquele espaço quente e isolado era difícil não imaginar nevões a cobrir o chão lá fora.
Envolvida pelo cheiro permanente a confeções doces, avancei a passos largos no acolhedor espaço. Os olhos dele foram os primeiros a encontrar-me assim que transpus a porta improvisada. Os meus também cedo encontraram os dele e, como sempre, não se desviaram.
Só desviei o olhar quando me sentei de costas voltadas para ele. Não me atrevi a certificar-me se ele ainda estava a olhar, sentindo já o meu coração a esmurrar as minhas costelas.
Não sei o nome dele. Já o devo ter ouvido algures, mas provavelmente não quis saber, até porque não faria diferença. Tudo o que importa é o nome que todos os poros dele gritam.
Vejo-o todos os dias nas situações mais comuns. Já sabia da existência daquele clone. Houve um dia nos primórdios do verão, mesmo nas despedidas do ano transato, em que ele passou de mais uma sombra no corredor para um gigante bem visível. Na situação mais comum e mais simples, olhei bem para ele. Na maneira como torcia as mãos quando estava nervoso, na postura entre o descontraído e o formal dele, na voz dele, no sorriso dele, nos olhos enormes e claros dele, que me fitavam com franqueza. Nesse dia a minha respiração falhou-me. Não consegui controlar o espanto, a angústia, a saudade. E todos os dias desde então, porque tenho a graça ou a infelicidade (ainda não me decidi) de o ver todos os dias, a minha pulsação atinge velocidades recorde sempre que o vejo. Desde esse dia que eu decidi que não importava quem era aquele rapaz. Que ele, para mim, seria apenas uma memória viva, que me manteria a sanidade, que me recordaria da verdade.
Voltei-me, enfim, para trás, curiosa. Ele já não olhava para mim, respondia a uma qualquer pergunta feita por uma qualquer sombra naquele espaço amplo. Deu-me tempo para o observar um pouco mais, para me admirar com as parecenças, para ficar tão destroçada quanto feliz. Até que os olhos claros e sinceros dele viraram-se de novo para mim. E eu senti-me pequena. Exatamente como se fosse a versão original a fitar-me. Senti-me insignificante e exposta.
O meu coração estava a tentar a todo o custo sair-me do peito. Respirei algumas vezes para o controlar e sorri tenuemente àquele rapaz que não fazia ideia do que era a meus olhos. Recebi um meio sorriso de volta, que me fez virar-lhe de novo as costas e voltar a concentrar-me nas futilidades da vida.
Fiquei a ponderar se havia de ter pena dele. Afinal de conta, em termos visuais eu usava-o para meu próprio proveito, para manter as minhas ilusões e loucuras. E ele, vendo-me tantas vezes a fitá-lo com uma curiosidade indisfarçada provavelmente supunha que... Enfim.
O pobre rapaz é completamente ignorante das minhas intenções. É completamente ignorante que, se alguma vez me dirigir a palavra, eu sou capaz de colapsar. Mas que não será por ele. Nunca, ele não importa, quem ele é, o que ele faz, o que ele será. O nome dele, a idade, de onde vem. Ele não importa. O que importa é que, se ele alguma vez me dirigir a palavra, a voz que eu vou ouvir não é a dele. O sorriso que ele me dirigiu não era dele. O rosto que estará a interpelar-me não será o dele.
Ele não importa. O que importa é que a presença dele é reconfortante, vitalícia. Ele existe, perto de mim, todos os dias. Ele é uma recordação ambulante de tudo o que eu já fui, de tudo o que me aconteceu.
Ele não é ele. O pobre rapaz ignorante é só uma sombra. Ele mesmo, ou pelo menos a aparência, é outro alguém. Um alguém de quem eu me despedi há muito tempo, um alguém que está muito longe e que nunca, mas nunca, há de voltar.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O Animal

O ciclo sem fim

A ironia da indiferença