Saudades

Abri os olhos e sacudi a areia que se entranhava na minha pele. Enquanto o fazia ouvia as vozes, os risos, as saudades a serem mortas com meras palavras acusativas ou brincalhonas, enquanto as que queriam realmente dizer se entrelaçavam nas cordas vocais.
Dessas vozes destacava-se uma. A voz que eu pensei que não voltaria a ouvir. Constituiu uma enorme surpresa para mim perceber que já não me lembrava como era essa voz. Não tinha passado assim tanto tempo. Foi ainda uma maior surpresa perceber que também já não me lembrava do rosto de onde provinha a voz. Para matar a minha curiosidade, virei-me e pousei os olhos nele.
Não me consegui impedir de sorrir. As circunstâncias poderiam ter mudado, mas ele estava igual. Reconfortantemente igual. E os risos que saíam das bocas que o rodeavam também eram iguais. E a praia, aquele antro onde descansavam todas as minhas memórias, também estava igual.
Só eu mudei, percebi, perdendo o sorriso.
Não consegui tirar os olhos dele por uns momentos. Mil perguntas atravessavam a minha mente, perguntas que eu lhe deveria ter feito, mas que a minha nova personalidade não deixava. Talvez a antiga também não deixasse, mas por razões diferentes.
Sorri-lhe, mais uma vez e apesar de ele não conseguir ver, e voltei a deitar-me na minha toalha. Cravei os olhos no céu azul.
Não fazia ideia do quão deslocada me sentia até aí. Do quão velha demais me sentia para todas aquelas conversas, todos aqueles risos. Do quão ridículas eu achava que eram as palavras proferidas por todos aqueles que um dia, há não assim tanto tempo, eu ousei chamar de amigos.
Só aí fiz ideia do quanto tinha mudado. Só aí senti os travões que se haviam instalado na minha garganta, impedindo-me de dizer aquilo queria. O que é uma pena, porque eu sempre tive muito para dizer.
Também foi só aí que percebi que tinha acabado. Vê-lo destruiu a minha nostalgia. Senti-me um pouco a cair no desespero, porque não sabia com o que ocuparia a mente a partir daí, sobre o que escreveria. Mas fazia sentido que assim fosse. Não o ter visto naqueles meses todos tinha-me dado autorização para criar uma imagem dele que não era real, imagem à qual me agarrei de unhas e dentes porque me impedia de ficar sozinha com os meus pensamentos. Mas, pelo menos, tinha escapado daquela prisão, ou assim o pensei na altura.
Consegui, pela primeira vez em tanto, mas tanto tempo, admitir a mim própria que tinha saudades dele. Mas não da maneira acutilante de antes, não da maneira rasgada de há pouco tempo.
Se seremos amigos outra vez, passados todos estes meses? Duvido. Os travões na minha garganta impedir-me-ão, bem como a minha consciência, bem como o meu perdão, ou a minha falta dele, aliás.
Se realmente acabaram todas as minhas ilusões, todos os meus fins, todo o meu definhar? Definitivamente não. Este é apenas um intervalo provocado pelo choque de o ver de novo.
Lamento que ele seja apenas alguém que eu costumava conhecer. Porém lamento ainda mais profundamente que pormenores, palavras, momentos, se comecem a desvanecer na minha mente. Que todo ele se comece a desvanecer em mim ou de mim.
E lamento, com todo o meu ser, que não me tenha conseguido manter. Que tenha mudado, que seja diferente. Lamento por ter deixado que as circunstâncias tenham apagado tudo o que eu era.

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