A Liberdade

Num alpendre de granito, algures numa terrinha à beira-mar, algures num distrito invicto, algures no país da saudade, está uma rapariga de olhos negros.
Enfrenta a brisa matinal, os débeis raios de sol que tanto caracterizam o início do dia.
Tem uma caneca de café na mão direita, que leva à boca de quando em quando, em gestos suaves e regulares. Ainda tem o pijama vestido, ainda está descalça após uma noite de sono calorenta. O cabelo dela, transformado em ouro pelos raios de sol, está desgrenhado devido à luta noturna contra a almofada.
Usa um sorriso vago e sonhador nos lábios e aponta os olhos negros para o horizonte, onde consegue ver os contornos da água azul do mar, indicando que está perdida nos seus pensamentos, presa dentro da sua mente.
Entre as barras da sua prisão passam planos de viagens, de atividades, de atitudes. Entre as grades do seu calabouço delineam-se os rascunhos da saudade. Ela não sabia bem de que tinha saudades. Talvez daquilo mesmo, da visão solitária das incríveis manhãs de primavera. Da sensação da liberdade óbvia. Das enormes conversas consigo própria, sobre assuntos que foram feitos para serem discutidos com outras pessoas. A verdade é que era a única maneira de ter uma conversa inteligente e madura por inteiro.
Riu-se para si própria, os cantos dos seus olhos enrugando-se com ternura. Tinha a noção de soava como uma lunática.
A nostalgia matinal havia voltado. Aquela sensação de leve tristeza e explosiva felicidade, misturadas com interminável saudade de ínfimos pormenores. Como por exemplo, daqueles momentos de solidão e liberdade. Das conversas maduras. Quanto tempo havia passado desde que tinha uma? As saudades que tinha das vozes graves injetadas com respeito, oportunidade, delegações e objetivos! Dos debates sobre tudo e sobre nada.
É tão nova esta rapariga de olhos pretos! No entanto tem em si este incêndio de maturidade, de desprezo pela infantilidade, pela adolescência.
Os olhos dela voltam a perder-se nos contornos do mar.
Sorriu vagamente, mais uma vez. Liberdade. Era essa a sensação que tinha no peito. Seriam mais de três meses a poder fazer o que quisesse, sem obrigações. E os planos de que se enchia seriam cumpridos, prometeu-se.
E, ao contrário do ano passado, não se perderia com diminutas questões que a distraíam e que não lhe faziam bem nenhum. Sorriu, surpreendida, ao perceber que não sentia saudades delas. Deles, aliás. Percebeu que isso marcava o fim de uma era. Era , agora, apenas ela. Já não era a rapariga que se tornava um acidente catastrófico quando conhecia um homem.
A brisa tornava-se desconfortável. Pé ante pé, deixou o alpendre de granito vazio e entrou dentro de casa.
No alpendre deixou também toda a nostalgia. Dentro de casa, consigo, só entraram as fortes convicções de uma mulher que nada mais tem que os seus ideais.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O Animal

O ciclo sem fim

A ironia da indiferença