A Grande Muralha da Insensibilidade

Sinto-me sinceramente surpreendida por o típico pânico não se ter instalado nas minhas veias. O pânico de quem não quer mudanças, de quem não quer viver com alguém.
Se isso significará alguma coisa? Espero desesperadamente que não. E, alguma parte de mim, talvez a parte de mim que ainda acredita em contos de fada, se é que essa parte de mim ainda existe, anseia que sim.
Não mudei de ideias. Nunca mudo de ideias, elas apenas se suavizam ou radicalizam. Continuo a achar que brincar ás casinhas seria um desperdício de um potencial para grandeza. Do meu potencial para grandeza.
Continuo a achar os amores épicos dos meus colegas etários extremamente exagerados e advindos de cérebros cheios de telenovelas e de falta de autorrespeito.
Continuo a sentir o muro enorme que é a minha incapacitante falta de sentimentos, ou a minha incapacitante falta de vontade de sentir sentimentos, ou ainda a minha falta de vontade de me partilhar seja de que maneira for e seja com quem for.
No entanto, admito que estava errada. Estava errada quando achei que nunca mais sentiria nenhum tipo de arrepio na alma. Errei quando acreditei que, com a minha idade, estava viúva do meu próprio coração. E era, além disso, uma viúva indiferente.
Sempre apregoei que somos demasiado novos para tudo que tenha a ver com amor, incluindo para acreditarmos que não há mais ninguém para nós. Sempre achei ridículo quando as raparigas suspiravam por essa sensação de que para além daquela pessoa, não havia mais ninguém para nós, nunca mais. Mas acabei por acreditar no mesmo. Se bem que no meu cado, essa única pessoa, sou eu. Acreditei e acredito que não há mais ninguém para mim, para além de mim.
Nisso não sei se estou errada. Mas estava errada, ou pelo menos enganada, quando senti este muro à minha volta, que sabia que me impedia de sentir como as outras pessoas sentem. Nunca senti como as outras pessoas sentem, mas isso tem-se assoberbado ao longo dos anos, ao longo das desilusões e ao longo desta permuta do meu sangue por fúria. E este muro, que eu já sinto há muitos anos, algures entre a boca do meu estômago e a minha caixa torácica, convenceu-me que nunca mais sentiria um ínfimo de afeição por outra pessoa. Se algum tipo de afeição fosse, seria uma amizade, desinteressada, irrelevante e, acima de tudo, cheia de tédio.
Acreditei que nunca alguém me reviraria o meu estômago, o meu cérebro, o meu coração e a minha vontade, outra vez, mas esqueci-me de considerar que estes meus componentes são separados, e que alguém pode, portanto, revirar o meu estômago e a minha vontade, sem revirar o meu coração ou o meu cérebro. E foi o que aconteceu.
Surpreendi-me ao sentir as já desconhecidas descargas elétricas no meu estômago, e a já esquecida sensação do acordar de uma vontade feroz e implacável.
Não é que acredite que isso signifique mais do que uma pura reação física a outro ser humano, mas continuo a achar que deva agradecer a esse ser humano, por me relembrar dessas sensações e, essencialmente, por me relembrar da minha juventude e da existência de muitos peixes no mar, por assim dizer, ou seja, da existência da possibilidade de eu voltar a ter as sensações típicas que detesto e idealizo.
E, havendo essa possibilidade, não quer dizer que eu as queira. Não vivo no momento mais oportuno, nem sou a pessoa certa, nem tenho o que é preciso para ser a pessoa certa. Não sei depender emocionalmente de outra pessoa, não tenho o nível de empatia certo, e tenho objetivos que excluem a presença e a intervenção de outra pessoa. Por isso é que o amor não é para mim. A paixão, por seu lado, é, e quando pensei ter perdido a capacidade de me apaixonar, achei digno de mais reação do que um jorrar de tédio absoluto. Mas foi tudo o que a minha alma seca e árida como um deserto conseguiu oferecer.
Por isso, por ser na ilusória paixão que eu estou confortável, é que sei que não sou a pessoa certa. Eu sou a mulher ou a rapariga, que eles adoram antes de encontrarem outra pessoa que lhes retribui a adoração. Eu sou a que passa pela vida deles como motorista e não como mera passageira na camioneta da vida. Eu sou a quem eles dizem "nunca me senti assim", antes de encontrarem quem os faça sentir mais. Elas, todas as que eles acabam por encontrar, é que são as certas, é que são as que têm estofo para subserviência e compromisso, é que são aquelas em que eles podem deitar a cabeça e descansar, é que são as que tomam conta deles e são as esposas, as capacitadas em termos emocionais. E eu sou apenas uma parte emocionante e exaustiva, um teste à paciência, em que eles têm de aprender a lidar com alguém que nunca se vergará aos seus desejos, às suas vontades e que não se compadecerá das suas declarações de amor, e que nunca lhes poderá oferecer mais do que paixão.
Não só me resignei com esta realidade como cheguei a adorá-la. Porque me conferia uma liberdade que mais ninguém poderia ter, e porque me fazia sentir poderosa, por poder tocar a vida daquelas pessoas, sem realmente estar nas suas vidas.
E é por tudo isto que eu não me permito a acreditar em contos de fadas ou romances encantados, Haverá quem o faça e haverá quem os tenha, mas há pessoas que não foram feitas para finais felizes, até porque nunca foram feitas para inícios. Além disso, há também pessoas que procuram algo muito mais importante e muito mais transcendente do que um final feliz, a realização pessoal ao máximo, a utilidade no mundo, a salvação da sociedade. E é por isso, por saber que estou destinada a mais, que não me incomoda saber que não terei um final feliz. Que não me incomoda sentir o muro que me distingue do resto do mundo.
Mas continuo a agradecer por me ter sido mostrado um caminho alternativo. Um caminho de possível felicidade, rotinas e sorrisos. Agradeço que tenham acordado as minhas sensações mais básicas, ou pelo menos parte delas. Agradeço ter sido relembrada da sensação doce dos inícios, antes de chegar a parte amarga dentro de todo o princípio.
E agradeço que tenham trespassado a minha muralha e me tenham mostrado como é a vida do lado dos que acreditam na Terra do Nunca. Talvez um dia eu também acredite.

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