Rancores filosóficos
Dia 424:
Senti-me na obrigação de reabrir este diário. Afinal, sempre que o assunto sobre o qual ele versa era reaberto, fazia sentido reabri-lo também. Assim o fiz durante quase um ano. Até que, a partir de certa altura, percebi que já não precisava de o fazer. Passei a fazê-lo apenas e só quando as saudades me atingiam como um tiro certeiro.
Passaram 424 dias. A velocidade a que o tempo passa corrói-me. Afinal de contas, eu lembro-me do dia 1. Eu lembro-me vividamente da semana 1, do mês 1, do ano 1. Lembro-me como se fosse hoje de como morri, vezes e vezes sem conta. Lembro-me como se fosse hoje de não achar que houvesse lugar mais seguro do que a minha cama, o meu quarto. De achar que nunca ia conseguir voltar a levantar-me daquele antro da tortura. Lembro-me de como, de repente, dei por mim sozinha. Não realmente sozinha, mas completamente sozinha, no sentido mental da palavra. Finalmente deu-se uma lucidez cortante na minha cabeça, uma que me mostrou uma realidade cinzenta, em que não conseguia ouvir mais do que os meus pensamentos, as minhas ilusões, os meus melodramatismos. Já não havia nada a distrair-me. Os meus pensamentos gritavam-me aos ouvidos.
Aprendi a lidar com eles. Aprendi a gostar da sensação de ter a mente contundentemente clara. Aprendi a adorar a solidão.
Reviver o passado foi uma decisão imprudente. Principalmente sabendo que não foi só ''um passado''. Foi algo que me mudou. De uma maneira estranha e agridoce.
Levou-me a ter curiosidade. A querer comparar como as coisas eram e como as coisas são. E a ler aquilo que mantive para me relembrar porquê.
E esse simples ato, o de ler, relançou-me num rancor apagado, quase magoado.
Como é óbvio, eu tinha-me esquecido. Tinha-me esquecido de como fora. De como tudo fora. De como eu era. Tinha-me esquecido como é que essa parte de mim se tinha apagado.
Tinha-me esquecido porquê que me é impossível sentimentos espontâneos.
Ler aquilo que li, lembrou-me. E mandou-me fechar de novo o livro.
Para além de me lembrar de todos os meus patéticos sintomas na fase inicial (já supra referidos), lembrou-me as mudanças. E com as mudanças vieram os acontecimentos. Os acontecimentos que foram um infinito relembrar, um infinito ciclo. Porque todos os acontecimentos desde o de há 424 dias foram iguais. A mesma história, que começa como um conto de fadas e termina com a suposta vilã redimida a transformar-se na vítima de um príncipe cruel sob o feitiço de uma qualquer princesa reles.
Quão irónico.
Os entendidos chamar-lhe-iam ironia do destino. Eu, ousadamente, chamo-lhe karma. Afinal, não é o karma a absorção de tudo o que fizemos de mau e de bom e o reflexo disso mesmo?
Bem, devo ter feito muito de bom, tendo em conta que tenho uma vida maravilhosa. Mas, numa situação paralela, em termos amorosos, devo ter feito (esqueçamos o ''devo ter'', todos sabemos que fiz) muita coisa de mal. Afinal, a mesma coisa acontecer 3 vezes seguidas, não é propriamente coincidência ou azar, pois não?
Sim, seria de esperar que com cada uma destas 3 histórias, eu aprendesse. Curiosamente, sou mais teimosa do que o destino, porque não aprendo. Não aprendi absolutamente nada. Portanto, enviem-me mais casos desses, mais contos de fadas mentirosos. Tudo correrá exatamente da mesma maneira e levará exatamente ao mesmo sítio.
A diferença é que desta vez, desisti de querer saber. Desisti de acreditar. Portanto, nada me pode afetar realmente se eu souber desde o início que é farsa.
Seja. Desisti.
O meu conto de fadas em tempo real, terminou comigo como rainha do alto da maior torre do meu castelo, que é verde e enorme, onde um nevoeiro cinzento se esfuma, onde dragões ferozes rugem com indiferença e rancor. Com os olhos negros apagados, um belo e arrogante sorriso no rosto e os braços graciosamente cruzados, fito uma janela que me mostra o infinito azul e alegre das paisagens longínquas. E despeço-me da parte de mim que lhes pertencia, que acreditava, que queria saber, que tentava. Despeço-me da parte de mim que sentia. E vivi feliz (seja lá o que for isso) para sempre...
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