Percalços
Nesta tarde cinzenta e típica do fim de novembro, quero contar a história que já contei um milhão de vezes. Mas não o posso fazer, porque já não há mais a dizer. Já gastei todas as palavras, já passou todo o tempo na ampulheta, já se esvaiu de mim sem se esvair todos estes anos. Porque não sinto um pingo de amargura ou ódio a fluir-me debaixo da pele, portanto não posso discutir comigo mesma. Apenas saudades e cansaço.
Saudades do tempo em que eu não via o mau em tudo. Saudades do tempo em que eu nunca estaria sozinha, apesar de me sentir sempre e irremediavelmente sozinha. E com isto não me refiro ao tempo em que era abafada sem o ser. Refiro-me ao tempo em que novembro significava proximidade ao natal, castanhas, frio e lareiras. Agora, apenas significa o tempo a escorrer dos meus dedos. O meu último novembro antes da minha vida dar a maior volta possível. E eu, que detesto mudanças, luto com esta com todas as minhas forças. Luto com o fim da minha infância. Não estou pronta, de maneira nenhuma.
Mas também não era nisso que eu me queria concentrar.
Ele disse que iria chover. Não está a chover. Está uma tarde cinzenta e murcha, mas não está a chover. E essa pequena frase, tão pequena, foi a nossa sepultura. Não foi um fim determinado. Não podemos ter um fim determinado porque nós mesmos não somos nada determinado ou rigoroso, com limites e contratos. Somos uma área cinzenta. E o cinzento esvai-se, esborrata, e começa a tornar-se em branco, em nada.
Passou muito tempo. Muito tempo, ao ponto de eu achar ser tempo demais. Mas quem sou eu para discutir tempo? 1 ano é muito tempo, mas passa com pressa o suficiente para serem 2 meses. O tempo é irrelevante porque eu não estou aprisionada. Sou livre e continuo eu.
E ele esvai-me por entre os dedos. E eu deixo-o. Deixo-o porque não há nada que eu lhe possa dizer para ficar. Deixo-o, apesar da ideia de ficar realmente sozinha me aterrorizar. Deixo-o porque, em algum momento ao longo deste ano e uns meses, eu devo tê-lo amado. Talvez não na forma explosiva que eu gostaria de o amar, mas na forma calma e de completa rendição.
Podia mentir e dizer que anseio pela liberdade ainda maior que depois vem. Mas isso seria mentir. Quem não quer enlear-se em mentiras, ter dias de esperança e pertença? Mesmo que sejam poucos, mesmo que ele me enlouqueça de fúria a maior parte das vezes.
Ele esvai-se por entre os meus dedos... Claro que eu, na minha arrogância, acreditei que o podia manter à minha espera para sempre. Mas a parte racional de mim, que não está cega de amor próprio, sempre soube. Eu só esperava estar mais consolidada quando ele se fosse. Só esperava conseguir aguentar-me sozinha.
Ele pode ir. Lembrá-lo-ei sempre como o meu porto seguro, aquele que me ajudou a ultrapassar-me a mim mesma, aquele que me deu alguma estabilidade, aquele que me tornou a pessoa que sou hoje, aquele que me mimou, me amoleceu, que me endureceu, também. Se ele se for agora, será um santo na minha mente. Como nenhum foi.
Ele deve ir. Que lhe vou eu dar que seja mais do que lhe dei antes? Eu aguentaria uma situação destas? Não. Acho que não. Espero que não. Se ele merece melhor? Merece diferente. Merece alguém que acredite no mesmo que ele, que queira o mesmo que ele. E eu também mereço alguém que acredite no mesmo que eu, que queira o mesmo que eu. E, infelizmente, não somos essa pessoa um para o outro.
Fomos uma mera fase um do outro, uma fase com os seus altos e baixos, entre a alegria e a fúria, mas inevitavelmente feliz.
Espero o fim. Já sei que ele aí vem. Eu lembro-me da sensação fria de afastamento crescer a cada dia, até simplesmente romper e ele desaparecer. Claro que esse não ficou marcado como um santo na minha mente. Ficou, a princípio porque eu era cega e nova. Continuo nova, mas não cega. Este é um santo porque o é. Apesar de não ser, de todo, perfeito, é um santo.
Talvez eu seja completamente ignorante e esta sensação cansada e confortável seja o amor. Mas não acredito. Pelo menos não é o amor que se sente na minha idade, e eu não quero perder a hipótese de o sentir de novo.
Talvez nunca mais o vá sentir. Talvez este seja o último. Talvez não venha mais nenhum depois. Talvez depois só venham sequências de lixo e humilhações. Seja.
Ele esvai-se por entre os meus dedos... E, assim que ele desaparecer eu planeio hibernar. Concentrar-me nos últimos testes e depois passar as duas semanas de férias na cama, a hibernar, a tentar não pensar no assunto. A aproveitar a solidão que tanto quis.
Não confundam este meu discurso com mágoa. Resignação, sim, alguma nostalgia, também. Mas não posso estar magoada. Já passou demasiado tempo. A pacificidade reina.
E o mundo continua a girar.
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