O Futuro

21 de setembro de 2024,
As minhas pernas nuas estavam cruzadas debaixo da mesa alta. O meu punho fechado suportava o meu rosto, enquadrado pelo meu cabelo curto, até ao meio do pescoço, que se se encaixava perfeitamente na minha expressão. Costumava adorar cabelos longos, mas há algum tempo que percebera que o que era mais prático era o adequado. Aliás, passara a conceber a estética pessoal como uma mera forma de marketing. Já não me vestia para me sentir bem, para impressionar a mim mesma, a outras, a outros. Sabia o aspeto que tinha. Sabia que era tão prejudicial como benéfico. Portanto, passei a descuidar-me. Não literalmente, mas no assunto em que apenas me vestia bem por hábito, para ter um aspeto polido e de confiança. Apenas me olhava ao espelho para ter a certeza que a minha maquilhagem estava bem colocada, não para me embebecer com a minha aparência. Era irrelevante.
Daí que as minhas unhas fossem curtas e pintadas de um vermelho escuro. Daí que estivesse sobre uns sapatos pretos de tacão de 15 centímetros (a altura conferia-me profissionalismo, integridade, idade), e daí que usasse um vestido preto fechado à volta das minhas curvas, até meio das coxas. A minha maquilhagem reduzia-se a uns pozinhos nos olhos e um batom de um vermelho esbatido. Mais uma vez, eu sabia o aspeto que tinha. Sabia perfeitamente como o acentuar. E, mais uma vez, só o fazia porque sabia que, dependendo do meu aspeto, tinha diferentes portas, diferentes oportunidades. E sabia aquela que queria nessa noite.
As minhas unhas batiam ritmicamente no copo fino onde boiava o meu Martini. Odiava esperar. Ora aí está algo em que nunca mudei: nunca chego atrasada e odeio esperar. Em contrapartida, ele estava já 5 minutos atrasado.
Sabia também a expressão que o meu rosto fazia. A de aborrecimento, de arrogância, de superioridade, de análise. Aquela que adotei há mais tempo do que consigo contar. Sabia que ele me reconheceria por essa mesma expressão. Afinal, eu estava tão diferente em tudo o resto...
Uma mão tocou-me no ombro. E eu virei o meu rosto para a direita, apenas o suficiente para ter um vislumbre dele. Apenas vi um rosto atraente a sorrir, uns ombros largos metidos numa camisa branca e numas calças pretas. O contraste ficava bem na pele morena dele.
O pôr do sol doirava-se fora das enormes janelas do lounge. Ele contornou-me, de modo a fitar-me diretamente. Descruzei as pernas e endireitei as costas, pousando as mãos no colo. Estes gestos eram meros reflexos, hábitos de alguém que tem de aparentar uma certa imagem. Outro reflexo que tive foi estender-lhe a mão. Reprimi-o e esforcei-me por sorrir. A dificuldade que o gesto significou foi interessante.
O sorriso dele abriu-se ainda mais e os olhos dele passeavam-se em mim, de cima a baixo. Eu sabia perfeitamente o que ele estava a pensar. Aquilo que eu propositadamente planeara que ele pensasse. Evitei retribuir o olhar analítico. Limitei-me ao rosto dele. Quase 30 anos, mas nada de rugas, nenhuma mácula no rosto puro, apenas os contornos mais duros, mais quadrados. Não havia uma ponta de cansaço no rosto dele. O sorriso dele era igual a como foi há tantos anos, sem pôr nem tirar. Ele era o rapaz de que eu me lembrava, mas transformado em homem.
- Estás fantástica. - Disse ele, finalmente. - O cabelo curto assenta-te bem.
- Também estás com bom aspeto. - Respondi. - A idade tocou-te muito pouco.
Ele riu-se. Sentou-se na enorme cadeira à minha frente. Permiti-me apreciá-lo. Mas tudo o que havia a apreciar era o que eu já sabia. A enorme estatura, os olhos raiados de todas as cores, os ombros largos, o corpo musculado. Era tudo igual.
As horas passaram. Ele bebera uma série de bebidas que ela não conseguia pronunciar. No entanto, os efeitos do álcool pareciam passar-lhe ao lado. Eu mantive-me fiel aos Martinis. E em mim, os efeitos do álcool notavam-se. Mas levemente, porque eu sabia o que fazia, e não era minha intenção intoxicar-me.
A meia noite já pesava na escuridão. Já havíamos discutido o estado das nossas famílias, as nossas profissões, eu tentei não me gabar da posição privilegiada que tenho na maior firma lisboeta de Portugal, ele tentou não se prolongar sobre a sua própria profissão de muito sucesso. Ambos constatámos, nas suas consciências lógicas, o quão o outro estava diferente, o quão ambos havíamos crescido, gelado, perdido. A maturidade tirara-lhe o brilho dos olhos, a infantilidade da voz, os devaneios de espírito. Ele parecia-se mais comigo, numa versão mais nobre e alegre. O que me agradou, mas ao mesmo tempo me desiludiu. Estava à espera de encontrar o meu amigo de longa data, o rapaz, o menino. Ele percebia-me melhor agora. Eu percebia-o, finalmente.
Levantámo-nos dos bancos altos, já sorridentes e alegres, eu do álcool, ele de personalidade. A mão dele passou-me pela cintura, num gesto não de afeto mas de mera cortesias, para me ajudar a andar até ao carro dele. Assim que me sentou no lugar de passageiro e se sentou no lugar do condutor ao meu lado, suspirou.
Após um longo silêncio, confessou o que lhe ia na alma:
- 12 anos.
Eu sorri, sabendo que essa não seria a minha reação não fosse a ''coragem líquida''.
- 12 anos. - Repeti.
- O que é que nos aconteceu? - Perguntou ele, fitando-me com um ar triste. Eu encolhi os ombros.
- Crescemos. Somos adultos agora. Eu acho que é fantástico.
Ele sorriu tristemente.
- Não foi isso que eu quis dizer.
Eu acenei com a cabeça.
- Eu sei. Mas não te sei dar a resposta que me estás a pedir.
Ele fitou-me longamente por uns momentos.
- Compreendo.
O resto da viagem foi feita em silêncio, estando nós perdidos num mar de divagações. O que é que o passado nos fizera? O que é que o futuro nos reservava?

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