Antecipação - II
Os meus olhos aterrorizados fixaram-se na poeira. Os meus lábios estavam abertos, o meu rosto traduzia o puro horror de alguém que sabia que o seu fim estava eminente. Inspirei fundo o cheiro a enxofre e a pó. À minha frente os escombros da base da NATO lembravam o Apocalipse. E era, de certa forma, o Apocalipse. A salvação deste mundo, o fim desta guerra dissolvera-se ali, perante os meus demasiado novos olhos, num ruir de edifícios.
Os soluços atacaram a minha garganta. Sufoquei-os. Não era uma menina. Desde há um ano que era um soldado. Não uma menina. Não tinha o direito de chorar. Todas as minhas lágrimas tinham sido vendidas tanto ao Estado português, como à NATO, como a Deus, como ao Diabo. Recompus uma expressão digna e inexpressiva. Mas os meus olhos continuavam tão esbugalhados de terror como antes.
Sabia que tal aconteceria. Alistei-me para isto mesmo. Para morrer numa guerra sem sentido. Alistei-me para morrer. Não me pareceu justo que os nossos irmãos, os nossos pais, os nossos amigos, os nossos tios, os nossos primos, se alistassem e nós, mulheres, tivéssemos de meramente ficar em casa à espera de receber a notícia de que eles morreram. Preferi, portanto, ser proativa. Preferi estar num sítio onde saberia de primeira mão que os que amo e conheço haviam perecido. Preferia, além disso, perecer eu mesma.
Não confundam nada disto com altruísmo. Era puro, do mais puro, egoísmo. Nunca soube lidar com dor. Dor psicológica, isto é. E, na minha distorcida mente, calculei que era preferível morrer a ter que lidar com o desgosto da morte de alguém que me é próximo. Na minha distorcida mente, a partir do momento em que sofremos esses tipos de desgostos, já não somos pessoas funcionais. Pondo as coisas de outra maneira: há dois anos atrás, nos meus maravilhosos 17 anos, eu era uma folha branca e limpa. Um ser humano com muito à sua frente e muito pouco atrás de si, que nada sofrera, que pensara que nunca iria sofrer, iria apenas levar uma vida aborrecida e segura. Agora, 2 anos depois, sou já uma folha meia rasgada, suja, riscada, amarrotada, tão usada que é preferível simplesmente deitá-la ao lixo. E assim fiz: deitei-me ao lixo. Pratiquei a forma mais lenta, altruísta e útil de suicídio: alistei-me no Exército. E, no fim, no fim desta suja e limpa 3ª Grande Guerra, serei apenas mais um dos soldados que todos lamentam num enorme cemitério branco na minha pequena terra, que exibirá uma enorme bandeira de Portugal. Apenas mais uma casualidade, apenas mais uma vida. Danos colaterais. E os meus pais terão menos uma filha. Deus queira que a guerra acabe antes de lhes ser também roubado o filho. Deus queira que a guerra acabe antes de eu ter de perder o meu irmão.
Custou-me a perder a minha personalidade. Custou-me a absorver a ideia de que sou apenas mais uma. Mais um. Custou-me absorver a ideia de que a minha morte não será nenhuma tragédia. Serei apenas mais uma, no meio de milhões. Custou-me perder aquelas características que fazem de mim o que sou, custou-me perder os meus argumentos afiados ou qualquer noção de que alguma vez teria o futuro que queria. Se tiver futuro, ele será cheio de pesadelos, problemas de saúde e solidão. Acabou os planos de um curso superior, de uma carreira maravilhosa, de uma vida vivida como eu gostaria. Custou-me perder a minha independência, a minha integridade enquanto pessoa. Custou-me parar de argumentar e perceber que simplesmente não tenho escolha, nunca mais terei escolha.
A única coisa de que tenho saudades, para além da minha família, que não vejo nem verei por muito tempo, é a minha terra. A areia grossa, o mar bravo, o sossego absoluto que ainda assim se manterá. Um infinito círculo de paz e amor, como se a guerra não existisse. Com a exceção dos constantes funerais. O facto de ser uma freguesia com muita população jovem não a favoreceu na guerra. Todos os cidadão masculinos e alguns femininos marcharam para a guerra. Para mais tarde marcharem para a morte. Muitos deles eram meus conhecidos. Muitos deles eram meus amigos. Mas, a partir do momento em que ouvi que um míssil infortunamente aterrara na torre dos Clérigos, destruindo metade da Baixa da cidade do Porto, onde, muito provavelmente estariam muitos dos meus amigos (amigas, aliás, os meus amigos ou morreram a meu lado ou ainda me fitavam todos os dias, de olhos lassos e perdidos na morte), desisti de me importar com a morte. Curiosamente, o resto do país estava imaculado. Apenas aquela parte, aquele pequeno pormenor, fora destruído. Tal como a minha alma.
Era desnecessário dizer que quando ali chegara chorara mais do que todas as vezes na minha vida. E gritara de dor, de autocomiseração, de indignação. Quem eram aquelas pessoas, aqueles países, para destruírem o meu futuro, para apagarem milhares ou milhões de futuros? Quem é que eles se julgavam para decidirem quem vive e quem morre? Eles não eram Deus.
Mas eventualmente habituei-me à ideia de que aquelas pessoas que estavam a meu lado morreriam, dia após dia. Até que eventualmente seria eu a levar com uma bala no peito ou seria eu a levar com um míssil ou uma bomba em cima. E, quando assim fosse, só podia esperar que a minha morte fosse tão rápida que fosse quase indolor.
Uma mão pousou-me no ombro. A julgar pelo peso dela e pelo gesto, soube de imediato quem era.
- Estamos feitos. - Disse eu, sem qualquer inflexão na voz.
- Estamos vivos. - Respondeu-me ele. - É isso que importa.
Contorci o rosto. Como é que até na guerra este rapaz - perdão, este homem - era capaz de ver o lado positivo das coisas? Fitei-o de frente, ignorando os meus olhos marejados. A minha expressão cerrou-se em desolação e fúria.
- Sabes o que isto quer dizer? Perdemos a porra da guerra.
- Não necessariamente. - Disse ele, de expressão serena, mas com os olhos tão desfeitos de cansaço, de dor, de medo, que ele nunca mais voltaria a ter uma expressão completamente relaxada. - E, mesmo que assim seja, podemos finalmente regressar a casa. Vivos.
- Achas que isto acaba aqui? Achas mesmo que a 3ª Guerra Mundial acaba em 2 anos? Achas mesmo que isto acaba antes de terem morto todos os soldados e destruído todos os países? - Uma lágrima escorregou pelo meu rosto sujo. - E mesmo que acabasse. Queres mesmo voltar? Para quê? Para uma terra, um país vazio de jovens, vazio dos nossos amigos, dos nossos familiares? Para uma cidade destruída? Prefiro morrer. Quem me dera ter estado dentro do edifício e ter morrido com as dezenas de pessoas.
Ele cerrou a mão dura à volta do meu maxilar. A intenção era o gesto ser precisamente agressivo, era magoar. Os olhos que fitavam os meus estavam tão vazios que me foi impossível lembrar-me de quando não estavam. Há 5 anos. A sua boca estava distorcida numa expressão de raiva. O rapaz que eu conhecera nunca magoaria alguém, nunca fitaria ninguém com tamanho ódio. Principalmente não me fitaria com tanto ódio. Mas havia que me lembrar que ele estava na guerra há mais tempo que eu. E, notava-se, moldara-o. O homem à minha frente não se parecia em nada com o rapaz que eu conhecera. Até fisicamente se transformara. O seu corpo estava agora coberto de cicatrizes, tinha explodido para uma forma tão musculada que era monstruosa quase. As suas mãos eram rudes e ainda mais calejadas. Os seus olhos, raiados de azul, verde e castanho estavam apagados. Ele perdera a alma dele há muito mais tempo que eu. E a dele, que era tão forte, perdera-se para sempre.
Lembrei-me de quando costumava imaginá-lo com a farda. Solene, digno. Mas nada parecia solene e digno num rapaz de 21 anos, com a pele suja de pó, o olhar enlouquecido, e mais preparado para a morte do que para a vida. A farda que ele trazia, que eu trazia, era apenas um símbolo. Um símbolo que passara a significar o mesmo que a frase ''Dead man walking''.
- Cala-te. Não te atrevas a repetir isso. - A voz dele soava a um rouco rosnar. - Vamos voltar para casa. Vivos.
O meu maxilar estava seriamente dolorido com a pressão que as mãos dele faziam. Mas eu sabia que ele não queria saber. Ali não havia desigualdades de géneros. Ali não havia nada que não guerra, agressividade, dor e violência. Não lhe consegui responder com sarcasmo. A ameaça nas palavras dele não era vazia, eu sabia disso. Mas também não me importava. Portanto, tal como se faz com um cão selvagem que nos rosna perto do rosto, ansioso por nos desfazer em pedaços, mantive-me calada e mostrei-me submissa, à espera que ele se fartasse e se afastasse. Não demorou muito. Ele tirou-me a mão do maxilar e o olhar dele parecia surpreendido consigo mesmo. Surpreendido por me ter magoado. Ainda não se habituara a ser um psicopata sem alma, como todos nós. O olhar que me dirigiu foi quase apologético, mas eu ignorei-o e voltei de novo o olhar para os escombros recentes.
Quando me inscrevi na guerra, não achei que tivesse de ter muito trabalho. Achei que com a tecnologia a guerra se passasse toda na Força Aérea e na Marinha. Alistei-me no ramo que supus ser mais seguro. Não me enganei quanto a isso. Tudo o que as pessoas agora fazem é carregar num botão, lançar um míssil e um milhão de pessoas, que podem ser civis, morrem. Mas também há o trabalho de terreno. O trabalho sujo. As missões que supostamente significam aniquilar os soldados que guardam as sedes dos governos, mas que eventualmente significam apenas matar civis.
Suspirei. Já não sou um ser humano. Já nenhum de nós o é. Incapacitados física ou emocionalmente. Somos apenas órgãos ambulantes, tão danificados que nunca merecerão o título de cidadãos de novo. Já não somos funcionais, já não somos civilizados. Somos meros cães de caça.
A mão dele voltou a tocar-me no ombro, desta vez com mais cautela. E pensar que há dois anos o meu maior problema envolvia esquivar-me a rapazes e o medo de chegar à idade adulta. Agora que já era legalmente adulta percebia que nada disso importava. Todos nós, quer tenhamos 19 anos ou 21 não passamos de bebés com armas nas mãos.
- Preciso que te aguentes, está bem? - Disse a voz dele, tremida, atrás de mim. - Preciso que te aguentes, porque se tu... Se te acontece alguma coisa, acabou para mim.
Fiz um meio sorriso, perdida nos meus pensamentos. É óbvio que ele não acreditava que eu me aguentaria. Há um ano eu era uma menina delicada, que nunca tinha disparado uma arma na vida e que provavelmente morreria na primeira missão. No entanto, sei lá como, ainda estou viva. Até eu me surpreendia.
E também percebia o que ele queria dizer com aquilo. O irmão dele morrera, os melhores amigos dele caíram ao lado dele, perante os seus olhos. Ele não tinha mais por que lutar. Mas eu tinha. Eu tinha a minha família à minha espera, eu tinha as minhas amigas à espera, eu tinha os meus poucos amigos ainda vivos. Eu tinha o meu país à espera do meu retorno. Ele também o tinha, mas alguém já tão danificado como ele não queria saber. Ele podia não o dizer, mas eu sabia que ele ainda ansiava mais pela morte do que eu. A única coisa que o impedia de morrer era eu. Virei-me de novo para ele. A mão dele roçou-me a pele do rosto. E eu mordi o lábio.
- Eu sei tomar conta de mim mesma. - Garanti. Era verdade, mas também era verdade que essa capacidade era inútil na guerra. - Tenta não morrer.
Ele sorriu. Na guerra aquela era a frase que expressava o maior carinho, o maior amor. Para as pessoas civilizadas e normais, equivaleria a um ''Adoro-te'' ou derivados. Para nós, estas 3 palavras eram o mesmo que se dizer a alguém que o amávamos. Até porque provavelmente 90% de nós perdeu essa capacidade.
- Tenta não morrer. - Retribuiu-me ele.
E o som do marchar na poeira envolveu-nos aos dois.
Os soluços atacaram a minha garganta. Sufoquei-os. Não era uma menina. Desde há um ano que era um soldado. Não uma menina. Não tinha o direito de chorar. Todas as minhas lágrimas tinham sido vendidas tanto ao Estado português, como à NATO, como a Deus, como ao Diabo. Recompus uma expressão digna e inexpressiva. Mas os meus olhos continuavam tão esbugalhados de terror como antes.
Sabia que tal aconteceria. Alistei-me para isto mesmo. Para morrer numa guerra sem sentido. Alistei-me para morrer. Não me pareceu justo que os nossos irmãos, os nossos pais, os nossos amigos, os nossos tios, os nossos primos, se alistassem e nós, mulheres, tivéssemos de meramente ficar em casa à espera de receber a notícia de que eles morreram. Preferi, portanto, ser proativa. Preferi estar num sítio onde saberia de primeira mão que os que amo e conheço haviam perecido. Preferia, além disso, perecer eu mesma.
Não confundam nada disto com altruísmo. Era puro, do mais puro, egoísmo. Nunca soube lidar com dor. Dor psicológica, isto é. E, na minha distorcida mente, calculei que era preferível morrer a ter que lidar com o desgosto da morte de alguém que me é próximo. Na minha distorcida mente, a partir do momento em que sofremos esses tipos de desgostos, já não somos pessoas funcionais. Pondo as coisas de outra maneira: há dois anos atrás, nos meus maravilhosos 17 anos, eu era uma folha branca e limpa. Um ser humano com muito à sua frente e muito pouco atrás de si, que nada sofrera, que pensara que nunca iria sofrer, iria apenas levar uma vida aborrecida e segura. Agora, 2 anos depois, sou já uma folha meia rasgada, suja, riscada, amarrotada, tão usada que é preferível simplesmente deitá-la ao lixo. E assim fiz: deitei-me ao lixo. Pratiquei a forma mais lenta, altruísta e útil de suicídio: alistei-me no Exército. E, no fim, no fim desta suja e limpa 3ª Grande Guerra, serei apenas mais um dos soldados que todos lamentam num enorme cemitério branco na minha pequena terra, que exibirá uma enorme bandeira de Portugal. Apenas mais uma casualidade, apenas mais uma vida. Danos colaterais. E os meus pais terão menos uma filha. Deus queira que a guerra acabe antes de lhes ser também roubado o filho. Deus queira que a guerra acabe antes de eu ter de perder o meu irmão.
Custou-me a perder a minha personalidade. Custou-me a absorver a ideia de que sou apenas mais uma. Mais um. Custou-me absorver a ideia de que a minha morte não será nenhuma tragédia. Serei apenas mais uma, no meio de milhões. Custou-me perder aquelas características que fazem de mim o que sou, custou-me perder os meus argumentos afiados ou qualquer noção de que alguma vez teria o futuro que queria. Se tiver futuro, ele será cheio de pesadelos, problemas de saúde e solidão. Acabou os planos de um curso superior, de uma carreira maravilhosa, de uma vida vivida como eu gostaria. Custou-me perder a minha independência, a minha integridade enquanto pessoa. Custou-me parar de argumentar e perceber que simplesmente não tenho escolha, nunca mais terei escolha.
A única coisa de que tenho saudades, para além da minha família, que não vejo nem verei por muito tempo, é a minha terra. A areia grossa, o mar bravo, o sossego absoluto que ainda assim se manterá. Um infinito círculo de paz e amor, como se a guerra não existisse. Com a exceção dos constantes funerais. O facto de ser uma freguesia com muita população jovem não a favoreceu na guerra. Todos os cidadão masculinos e alguns femininos marcharam para a guerra. Para mais tarde marcharem para a morte. Muitos deles eram meus conhecidos. Muitos deles eram meus amigos. Mas, a partir do momento em que ouvi que um míssil infortunamente aterrara na torre dos Clérigos, destruindo metade da Baixa da cidade do Porto, onde, muito provavelmente estariam muitos dos meus amigos (amigas, aliás, os meus amigos ou morreram a meu lado ou ainda me fitavam todos os dias, de olhos lassos e perdidos na morte), desisti de me importar com a morte. Curiosamente, o resto do país estava imaculado. Apenas aquela parte, aquele pequeno pormenor, fora destruído. Tal como a minha alma.
Era desnecessário dizer que quando ali chegara chorara mais do que todas as vezes na minha vida. E gritara de dor, de autocomiseração, de indignação. Quem eram aquelas pessoas, aqueles países, para destruírem o meu futuro, para apagarem milhares ou milhões de futuros? Quem é que eles se julgavam para decidirem quem vive e quem morre? Eles não eram Deus.
Mas eventualmente habituei-me à ideia de que aquelas pessoas que estavam a meu lado morreriam, dia após dia. Até que eventualmente seria eu a levar com uma bala no peito ou seria eu a levar com um míssil ou uma bomba em cima. E, quando assim fosse, só podia esperar que a minha morte fosse tão rápida que fosse quase indolor.
Uma mão pousou-me no ombro. A julgar pelo peso dela e pelo gesto, soube de imediato quem era.
- Estamos feitos. - Disse eu, sem qualquer inflexão na voz.
- Estamos vivos. - Respondeu-me ele. - É isso que importa.
Contorci o rosto. Como é que até na guerra este rapaz - perdão, este homem - era capaz de ver o lado positivo das coisas? Fitei-o de frente, ignorando os meus olhos marejados. A minha expressão cerrou-se em desolação e fúria.
- Sabes o que isto quer dizer? Perdemos a porra da guerra.
- Não necessariamente. - Disse ele, de expressão serena, mas com os olhos tão desfeitos de cansaço, de dor, de medo, que ele nunca mais voltaria a ter uma expressão completamente relaxada. - E, mesmo que assim seja, podemos finalmente regressar a casa. Vivos.
- Achas que isto acaba aqui? Achas mesmo que a 3ª Guerra Mundial acaba em 2 anos? Achas mesmo que isto acaba antes de terem morto todos os soldados e destruído todos os países? - Uma lágrima escorregou pelo meu rosto sujo. - E mesmo que acabasse. Queres mesmo voltar? Para quê? Para uma terra, um país vazio de jovens, vazio dos nossos amigos, dos nossos familiares? Para uma cidade destruída? Prefiro morrer. Quem me dera ter estado dentro do edifício e ter morrido com as dezenas de pessoas.
Ele cerrou a mão dura à volta do meu maxilar. A intenção era o gesto ser precisamente agressivo, era magoar. Os olhos que fitavam os meus estavam tão vazios que me foi impossível lembrar-me de quando não estavam. Há 5 anos. A sua boca estava distorcida numa expressão de raiva. O rapaz que eu conhecera nunca magoaria alguém, nunca fitaria ninguém com tamanho ódio. Principalmente não me fitaria com tanto ódio. Mas havia que me lembrar que ele estava na guerra há mais tempo que eu. E, notava-se, moldara-o. O homem à minha frente não se parecia em nada com o rapaz que eu conhecera. Até fisicamente se transformara. O seu corpo estava agora coberto de cicatrizes, tinha explodido para uma forma tão musculada que era monstruosa quase. As suas mãos eram rudes e ainda mais calejadas. Os seus olhos, raiados de azul, verde e castanho estavam apagados. Ele perdera a alma dele há muito mais tempo que eu. E a dele, que era tão forte, perdera-se para sempre.
Lembrei-me de quando costumava imaginá-lo com a farda. Solene, digno. Mas nada parecia solene e digno num rapaz de 21 anos, com a pele suja de pó, o olhar enlouquecido, e mais preparado para a morte do que para a vida. A farda que ele trazia, que eu trazia, era apenas um símbolo. Um símbolo que passara a significar o mesmo que a frase ''Dead man walking''.
- Cala-te. Não te atrevas a repetir isso. - A voz dele soava a um rouco rosnar. - Vamos voltar para casa. Vivos.
O meu maxilar estava seriamente dolorido com a pressão que as mãos dele faziam. Mas eu sabia que ele não queria saber. Ali não havia desigualdades de géneros. Ali não havia nada que não guerra, agressividade, dor e violência. Não lhe consegui responder com sarcasmo. A ameaça nas palavras dele não era vazia, eu sabia disso. Mas também não me importava. Portanto, tal como se faz com um cão selvagem que nos rosna perto do rosto, ansioso por nos desfazer em pedaços, mantive-me calada e mostrei-me submissa, à espera que ele se fartasse e se afastasse. Não demorou muito. Ele tirou-me a mão do maxilar e o olhar dele parecia surpreendido consigo mesmo. Surpreendido por me ter magoado. Ainda não se habituara a ser um psicopata sem alma, como todos nós. O olhar que me dirigiu foi quase apologético, mas eu ignorei-o e voltei de novo o olhar para os escombros recentes.
Quando me inscrevi na guerra, não achei que tivesse de ter muito trabalho. Achei que com a tecnologia a guerra se passasse toda na Força Aérea e na Marinha. Alistei-me no ramo que supus ser mais seguro. Não me enganei quanto a isso. Tudo o que as pessoas agora fazem é carregar num botão, lançar um míssil e um milhão de pessoas, que podem ser civis, morrem. Mas também há o trabalho de terreno. O trabalho sujo. As missões que supostamente significam aniquilar os soldados que guardam as sedes dos governos, mas que eventualmente significam apenas matar civis.
Suspirei. Já não sou um ser humano. Já nenhum de nós o é. Incapacitados física ou emocionalmente. Somos apenas órgãos ambulantes, tão danificados que nunca merecerão o título de cidadãos de novo. Já não somos funcionais, já não somos civilizados. Somos meros cães de caça.
A mão dele voltou a tocar-me no ombro, desta vez com mais cautela. E pensar que há dois anos o meu maior problema envolvia esquivar-me a rapazes e o medo de chegar à idade adulta. Agora que já era legalmente adulta percebia que nada disso importava. Todos nós, quer tenhamos 19 anos ou 21 não passamos de bebés com armas nas mãos.
- Preciso que te aguentes, está bem? - Disse a voz dele, tremida, atrás de mim. - Preciso que te aguentes, porque se tu... Se te acontece alguma coisa, acabou para mim.
Fiz um meio sorriso, perdida nos meus pensamentos. É óbvio que ele não acreditava que eu me aguentaria. Há um ano eu era uma menina delicada, que nunca tinha disparado uma arma na vida e que provavelmente morreria na primeira missão. No entanto, sei lá como, ainda estou viva. Até eu me surpreendia.
E também percebia o que ele queria dizer com aquilo. O irmão dele morrera, os melhores amigos dele caíram ao lado dele, perante os seus olhos. Ele não tinha mais por que lutar. Mas eu tinha. Eu tinha a minha família à minha espera, eu tinha as minhas amigas à espera, eu tinha os meus poucos amigos ainda vivos. Eu tinha o meu país à espera do meu retorno. Ele também o tinha, mas alguém já tão danificado como ele não queria saber. Ele podia não o dizer, mas eu sabia que ele ainda ansiava mais pela morte do que eu. A única coisa que o impedia de morrer era eu. Virei-me de novo para ele. A mão dele roçou-me a pele do rosto. E eu mordi o lábio.
- Eu sei tomar conta de mim mesma. - Garanti. Era verdade, mas também era verdade que essa capacidade era inútil na guerra. - Tenta não morrer.
Ele sorriu. Na guerra aquela era a frase que expressava o maior carinho, o maior amor. Para as pessoas civilizadas e normais, equivaleria a um ''Adoro-te'' ou derivados. Para nós, estas 3 palavras eram o mesmo que se dizer a alguém que o amávamos. Até porque provavelmente 90% de nós perdeu essa capacidade.
- Tenta não morrer. - Retribuiu-me ele.
E o som do marchar na poeira envolveu-nos aos dois.
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