Blast from the past

Tudo era inebriante. A música nas alturas ribombava-lhe no peito, fazendo-a vibrar e impedindo-a de não dançar, fornecendo-lhe uma energia sobrehumana. As luzes cegavam-na. Tudo se misturava e a fazia sentir fora de si. Por mais que a sua mente estivesse lúcida e clara, sentia-se a perder o controlo do seu corpo, das suas emoções, de si mesma e de tudo à sua volta. A sua alma evaporava-se e ela era um mero objeto, um mero corpo sujeito ao frio e às circunstâncias de uma noite. Era assim que se sentia, ali, perdida em letras e sons redundantes que a descontrolavam, completamente ébria da experiência, completamente pedrada em vida.
Dirigiu-se à piscina, imaginando que se perderia mais e que tudo o que alguma vez existiu na sua mente, no seu coração, fosse lavado pela água salgada e quente, pela imagem de corpos a movimentar-se depressa mas infinitamente devagar.
E foi aí que o viu.
Estava perdida nos seus pensamentos não existentes quando sentiu uma figura aproximar-se e tocar-lhe nos ombros. Os olhos que a fitaram arrancaram toda e qualquer esperança dela de se tornar apenas um objeto.
Haviam passado um milhão de anos desde que o vira uma última vez, pelo menos desde que o vira a meros centímetros dela. Podia não ter sido um milhão de anos em concreto, mas ela tinha-se metamorfoseado a um ponto que era irreconhecível. Era uma pessoa completamente diferente. Era outra pessoa. E, com o seu interior tinha-se estendido o seu exterior. Até fisicamente era uma pessoa diferente. Não significativamente diferente, mas mudada ao ponto de achar que demoraria a reconhecê-la.
Daí que tenha ficado surpreendida por ele a ter abordado tão prontamente, com tamanha simpatia e entusiasmo. Porque achou que estava diferente, porque achou que não significara o suficiente para ele ainda ter a imagem dela bem presa na mente ao ponto de saber imediatamente quem ela era. Porque o tom com que tudo tinha acabado tinha sido frio. Portanto, ela não o tinha visto e surpreendeu-a que ele tivesse reparado nela, e que a tivesse olhado exatamente como olhava antes, com os mesmos olhos brilhantes. Mas, desta vez, a voz dele era animada, o sorriso dele sincero. Ele estava genuinamente feliz por a ver. E isso mexeu com ela de uma maneira que a incomodou.
Depois da pergunta óbvia de circunstância, cumprimentaram-se. As mãos dele tocaram-lhe com simpatia, com cumplicidade. Como se todos aqueles anos que os separavam não tivessem acontecido. Como se fossem grandes amigos. Ela quis quase tremer. Não sabia que lhe dizer, não tinha nada para lhe dizer. Limitou-se a sorrir. O constrangimento era óbvio. Ele percebeu-o, e sem dizer uma palavra afastou-se. Não sem antes lhe dirigir outro olhar brilhante, um sorriso de honesta simpatia e alegria e de lhe passar as mãos pelo rosto em jeito de despedida.
Ela sentia-se a menina que era há essa quantidade de tempo enorme. A menina, completamente indefesa aos ataques de tudo e de todos. Completamente sujeita ao seu pobre julgamento. Completamente sujeita a ele e aos seus jogos mentais pervertidos.
A sua voz, por norma grave, afiada, certa de si, tremia a falar com aquele que sempre significara tudo de perfeito na sua muito doentia mente. Sorria timidamente. Tornara-se inofensiva outra vez. Perdera tudo o que havia ganhado em todos aqueles anos.
Tudo porque achara, acreditara piamente que se despedira dele para sempre pela última vez. E afinal, o destino, ou o acaso, tinham-no conduzido de volta a si. Por breves momentos por breves segundos, por breves inspirações do seu coração. Que não voltariam a acontecer, mas que eram um fenómeno de interesse. Que, no entanto, nada influenciaria a sua vida corrente.
Esquecer-se-ia de novo da existência daqueles olhos brilhantes, que ela cedo percebeu estarem cegos com o álcool e, daí, alegres, simpáticos, entusiasmados. A cumplicidade, o toque, tinha sido uma farsa provocada pela ebriedade. E lá estava ela, inofensiva, indefesa, e a sentir-se humilhada, de novo e para sempre.
Mas essa sensação passaria. Ele deixaria de existir na sua mente. E ela não queria que assim fosse. Portanto, imaginou-se a escrever-lhe cartas. Porque não?... Afinal, ele era uma parte da sua vida que nunca tinha sido bem apagada. Talvez assim o fosse. Talvez ele, de alguma forma, e na sua personalidade distorcida, a ajudasse. A apagar tudo o que lhe acontecera depois dele.
Escrever-lhe-ia cartas, decidiu. Nunca as enviaria. Elas ali morreriam, na sua secretária.
Tal como a parte dela que ela foi, há tantos anos, e que voltou a ser naquela noite.

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