Presságios
Abri os olhos. A escuridão clara atingiu-me e abafou o meu
sufoco de desespero. E, ali fiquei, deitada e a fitar o teto invisível do meu
quarto. A minha respiração estava a ser progressivamente controlada. O mesmo
para os meus olhos. Sabia que era demasiado cedo para acordar, mas agradecia
tê-lo feito. Preferia até ter acordado antes de os meus sonhos terem decidido
atormentar-me…
Mas eu não me queria lembrar. Queria voltar à ignorância, ao esquecimento. Queria voltar a esquecer-me da existência dele. Mas não era possível, pelo menos não por agora. Não por agora em que eu apenas pensava como era possível ter passado todo esse tempo e ele não se dignar a sequer perguntar por mim. Teria sido assim tão insignificante? Claro que sim. Ele era um homem adulto, independente e já não se lembrava das suas concubinas de adolescente (sendo concubina um termo muito correto, principalmente por causa da conotação pejorativa). Eu era uma paixão de adolescente, tal como ele fora a minha paixão adolescente. A diferença está precisamente nos artigos usados… Sei que o tempo passou e que não temos mais a dizer entre nós. Mas custava assim tanto, simplesmente perguntar? Como estava, como estava a vida? Pelos vistos, sim. Pelos vistos, reconhecer que eu existo é um sacrilégio.
Tinha sido tão real… E o que mais me incomodava era aquela
sensação de desilusão no peito, aquela que eu já devia ter perdido há tanto
tempo, aquela que me obrigava a reprimir todos os átomos do meu ser para não
desabar sobre mim própria. Não percebera o porquê do sonho, não percebera
porquê que o meu inconsciente se lembrara de algo que eu já tinha esquecido e
que estava bem enterrado nos recônditos da minha mente.
Olhei para o relógio. O despertador não tocaria até daí a
meia hora. Pensei em voltar a dormir. Mas sabia que depois daquele sonho, tudo
o que veria ao fechar os olhos seria a imagem que me atormentou. A imagem que
me levaria a passar o dia mergulhada numa nostalgia externa, estranha e
desconfortável.
Sabia que o meu estado emocional não ajudava. Andava
‘’emocionalmente claustrofóbica’’, como já tinha dito, com a certeza de que se
parasse, se abrandasse, se fechasse os olhos e me deixasse ir por um segundo, o
mundo desabaria aos meus pés. Porquê? Não faço ideia. O stress acumulava-se, as
frustrações emocionais também. Talvez fosse de mero cansaço. Talvez já fosse
completamente sonâmbula e os meus dias fossem apenas sonhos lúcidos.
Tal como previ, assim que o meu dia abrandava por um
segundo, e eu tinha tempo para respirar, a imagem do homem a colocar o braço à
minha volta, a puxar-me para ele, a cumprir todos os desejos que eu tinha
quando era desfeita, a sussurrar palavras tão frias mas que significavam o
pináculo da minha vida, invadiam a minha mente. A voz dele, a que eu já não me
lembro, ressoava-me nos ouvidos a dizer: ‘’houve um desenvolvimento na
personalidade’’. Palavras tão simples, tão formais, tão frias, tão ridículas,
mas tão familiares. Aliás, toda aquela imagem representava o fim de uma
jornada, o regresso a casa após uma longa viagem. Toda aquela imagem
provocava-me uma satisfação pessimista, como se tudo o que eu parti de mim, se
recolasse.
Não conseguia compreender porquê que, passado tanto tempo,
me tinha lembrado de tal imagem, de tal regresso, de tal personagem. Personagem
essa que fora por completo expulsa da minha vida, já agora. Não conseguia
compreender o meu subconsciente.
No entanto, tudo fez sentido, hoje, passados 2 dias deste
incidente. Tudo fez sentido quando alguém pouco importante andou a passear o
cheiro dele pelos corredores que me contém. Da mesma forma intensa, irritante,
que se colava à minha pele e que me deixava a sonhar durante dias e noites e
semanas e meses. Tudo fez sentido, quando ela disse o que disse. Quando
mencionei o nome dele sem querer, e ela disse o que disse. Quando, ao lado de
uma passadeira, fiquei com vontade de me deitar no meio da estrada.
De repente, lembrei-me do dia que era. Do dia, da noite que
tinha sido há duas noites atrás. E o que ela dizia, sobre aquela personagem,
sobre a forma como ela falara, de repente fez sentido. E magoou-me muito mais
do que devia.
Fito, agora, a madeira clara do chão do meu quarto. Não me
permito a desabar por algo de que eu até me tinha esquecido. Até porque não
pretendo desabar. Pretendo desmanchar as cordas vocais até não as ter. Pretendo
que, de alguma forma, o meu rancor atravesse quilómetros. Ou que o meu passado
se auto-apague. Passara um ano. Um ano, desde a noite que passei a inspirar de
felicidade e de esperança, enquanto ele me dizia exatamente o que queria, como
queria, para obter o que queria, a devoção de uma rapariga que o adorava, que o
amava, e que não tinha parado de o fazer. Passara um ano desde que ele passara
a noite a dizer como eu tinha mudado (daí o ‘’desenvolvimento da
personalidade’’), como o coração dele ainda batia por mim, como sentira
saudades de tudo o que me pertencia. E eu, pobre de espírito como sempre fui,
desfeita como estava, aceitei de imediato a hipótese de voltar a ter o que
tivera, de voltar a casa. Porque aquela relação fora uma casa para mim. Foi
para onde eu fugia sempre que queria, a única estrutura estável na minha vida
algumas vezes. Onde sabia que, ao abrir a porta, do outro lado estaria alguém
que me perdoaria, que me adoraria, que me aceitaria. Apesar de eu ser o
empecilho que era. Essa noite, a de 20 de maio para 21 de maio, tendo sido 21
um número bem escolhido pelo destino, foi a noite onde eu achei que os meus
pedaços se iam colar de novo.
Mas, como sempre fui no que tocava a ele, fui enganada,
humilhada e, mais uma vez, despedaçada.
E ali estavam os presságios do destino. Os indícios para me
lembrar daquela noite. Os 3 indícios… Mas eu não me queria lembrar. Queria voltar à ignorância, ao esquecimento. Queria voltar a esquecer-me da existência dele. Mas não era possível, pelo menos não por agora. Não por agora em que eu apenas pensava como era possível ter passado todo esse tempo e ele não se dignar a sequer perguntar por mim. Teria sido assim tão insignificante? Claro que sim. Ele era um homem adulto, independente e já não se lembrava das suas concubinas de adolescente (sendo concubina um termo muito correto, principalmente por causa da conotação pejorativa). Eu era uma paixão de adolescente, tal como ele fora a minha paixão adolescente. A diferença está precisamente nos artigos usados… Sei que o tempo passou e que não temos mais a dizer entre nós. Mas custava assim tanto, simplesmente perguntar? Como estava, como estava a vida? Pelos vistos, sim. Pelos vistos, reconhecer que eu existo é um sacrilégio.
Lamento que assim seja. No entanto, eu quero perguntar.
Quero perguntar o quê que os anos lhe têm feito. Se ele já se começa a sentir
velho. Se já arranjou emprego. Como é que a maioridade o anda a tratar. Se
ainda está na minha fase, em que o amor é uma brincadeira, ou se está na fase
dele, em que já o leva mais a sério. Tenho a sensação de que já lhe perguntei
isto, num milhão de sonhos que tive, a dormir e acordada. Mas ele nunca me
responde.
Tem alguém que conforte os problemas existenciais que o
assolavam de vez em quando?
Costumava não conseguir pensar em mais nada que não isto.
Duvido que ele já não saiba isso mesmo. Costumava não conseguir esquecer o quão
despedaçada estava. Costumava não conseguir esconder.
No entanto, cresci, enterrei. Ou pelo menos assim o creio.
Mas quando as minhas insónias e o meu cansaço me invadem, eu volto a pensar.
Porque creio que é a minha impossibilidade de pensar assim tão fundo que me tem
impedido de me lembrar. Mas o meu cansaço torna essa impossibilidade possível.
Convenci-me de que precisava de outra pessoa, que me
trouxesse o mesmo, mas maior e melhor. Passado tanto tempo já estava preparada.
E, racionalmente, tornou-se fácil fingir ‘’that you were just some lover’’.
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