Pobre (de) Espírito!

A escuridão começava a abater-se sobre ela. Curvava-se em cima de si própria, tentando salvar-se, tentando resgatar-se. O seu corpo tremia entre as leves convulsões típicas, as suas mãos tentavam alcançar algo inatingível.
As cortinas estavam cerradas porque ela não se queria ver, não queria que por um qualquer equívoco se visse no espelho. Sentada no tapete felpudo e atormentada pelas brutalidades da vida, deixava assim o mundo desabar em cima dela. Deixava-se escorregar no desespero, na ansiedade, na tão profunda tristeza dos dias anteriores. Deixava o silêncio surdo perfurar-lhe os ouvidos, deixava todas as suas cicatrizes sangrarem sem parar.
O seu rosto molhado desfazia-se na mais pura expressão de horror, de sofrimento, nascido após tantas noites sem dormir, abandonada aos seus pesadelos acordados, nascido no meio do seu nervosismo corrosivo, que lhe remoía as entradas ao ponto de lhe retirar a fome, ao ponto de sentir o ataque de pânico a subir-lhe no peito e ter de controlar a respiração para não o deixar matá-la.
Já não tinha forças, perdera-as algures no cansaço, algures na solidão.
E assim se mortificava, destruída e completamente humilhada, mais uma vez. Uma humilhação que viera do mais simples dos sorrisos, da mais simples das palavras. Uma humilhação que se resumia ao passado a reentrar na sua vida, querendo alterá-la, querendo espremer-lhe tudo o que era bom. Uma humilhação que se resumia a uma palavra que ela já não ouvia há um milhão de anos e que, por isso mesmo, foi um catalisador da sua desgraça. Tal como foi o sorriso fácil dele, o brilho naqueles olhos doces e a voz dele, que lhe perfuravam o estômago, os ouvidos, os olhos e o coração.
Tinha sido mais uma vez enganada pelos próprios sentidos. Tal como fora há tanto tempo, quando se deixara enganar pelas promessas de um homem que ela considerara, até aí, um anjo. Esse último homem sussurrara-lhe essa palavra um milhão de vezes, até ela, de facto, acreditar. Até ela acreditar em tudo o que se dizia, até se sentir num pedestal erigido pelo amor. Mas esse homem, que ela descobriu ser humano e tão atroz quanto ela, trouxe-a de volta à Terra.
E agora, aquela palavra que lhe sorria, despoletava um sentimento de traição adquirido, mesmo que tivesse sido só um engano.
A culpa e a humilhação assombravam-na, o tempo parecia parado naquele instante e ela parecia não conseguia parar de tremer, de se sentir perdida. Parecia poder ficar ali, a esvair-se de vida, para toda a eternidade. Quando parecia acalmar-se, um novo pensamento a assomava e ela voltava a ficar surda, cega e muda...
E no meio do seu desespero só se conseguia lembrar da culpa, da culpa melancólica de quem sabe que está a pisar uma área cinzenta em termos de moral, prestes a saltar para o lado errado. Porque havia que se lembrar que não era a única a sofrer, que a causa do seu sofrimento faria outra pessoa sofrer provavelmente da mesma maneira. E ela não desejava aquele tipo de perdição a ninguém.
Se meramente tivesse mantido os seus olhos no seu lugar... Se nada disto tivesse acontecido, se tudo fosse como era há uma semana atrás, tudo calmo, sem confusões...
Começava a hiperventilar, não sabendo o que fazer, não sabendo se devia fazer alguma coisa. Tinha chegado ao fundo desta sua jornada e tinha perdido.
Decidira-se a ficar ali para sempre, ou até quando lhe fosse possível. Decidira-se a desfazer-se até se sentir tão cansada que simplesmente e finalmente adormecesse.
Sentia o seu espírito a abandoná-la, sentia-se a ficar meramente num corpo inútil. Sentia a sua alma a enfraquecer até quase não existir.
Mas, de súbito, um pensamento infiltrou-se na sua pele. E, num ímpeto, levantou-se, como se uma réstia do seu orgulho decidisse protestar. Dirigiu-se à casa de banho e fitou o seu rosto pisado, molhado e vermelho.
A desilusão que a atacou quase a quebrou de novo. Estava desiludida consigo mesma, com aquilo que tinha feito a si própria por um motivo tão pequeno. Cuidadosamente, limpou a cara até parecer minimamente humana de novo.
Continuou a fitar-se, ainda vermelha, ainda com o rosto encrespado de dor. Mas seco, mas frio, mas quase calmo. O seu orgulho recuperava-se, a sua insensibilidade voltava. E a enorme nuvem cinzenta que a tornava racional, lúcida, que abafava os seus sentimentos há tanto tempo, voltou.
Conseguiu respirar fundo finalmente e uma raiva desinteressada instalou-se nela.
Tinha tomado uma decisão: Não. Não para ele, não para o passado, não para tudo.
Estava de volta. Tinha acabado o seu pesadelo.
Até que o telemóvel vibrou...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O Animal

O ciclo sem fim

A ironia da indiferença