Patética felicidade
Sobre a noite não estrelada, em que a escuridão se começa a
tornar absoluta, aqui estou eu, sentada neste enorme e maravilhoso terraço, no
mais profundo do meu meditar. Abraço a leve brisa e o cheiro a paraíso e a
perfeição.
Nesse dia não havia nada de mim que não implorasse por música calma, sagrada, que me enlevasse e me trouxesse de novo à Terra. Toda eu implorava por um fado choroso, cheio de saudade, por harmonias perfeitas e completas, que me fizesse transbordar.
A própria lua, vermelha e desfeita, implorava por essas melodias que despertam aquilo que nascemos a pensar que não tínhamos. E o meu peito, tão puramente cheio de lágrimas que eu nunca choraria, por mera nostalgia, melancolia, por mera e espontânea saudade, pedia por tudo o que fosse idílico. Ah! Como era irónico que o meu peito se debruçasse de uma janela de indiferença e pedisse por tudo o que lá fora passava! Pedia, e digo isto com a alma tão tocada que nem me embaraça, por um desses romances idílicos, paradisíacos que não existem senão nos sonhos das crianças, nos contos de fadas. Queria um conto de fadas, como os que via na infância, em que tudo era tão loucamente intenso, tão musical, que nada mais importava, que era possível abandonar tudo.
E eu estava farta. Estava farta desse cinzento que me invadira desde que deixara de amar, o que quer que isso seja. Lembrava assim a minha pobre alma, o meu pobre espírito, quando fora completamente dilacerado pela primeira vez.
Até aí o meu nobre coração estava intocado. E, passados uns meses, esse meu intocado coração foi rasgado. E chorou, chorou as lágrimas que eu nunca pude chorar. Rasgado, destruído, manteve-me sem fome, mergulhada num transe, num sono, como se o mundo tivesse parado e eu pudesse passar o resto da minha vida naquela cama que já estava farta dos meus olhares fixos nas paredes, inexpressivos, dos meus olhos que se desfaziam de desilusão, que se despediam da minha juventude. Farta dos meus olhos tão cheios de vida, completamente mortos, completamente vazios. Exatamente como eu me sentia. Mergulhei por dias longos na minha miséria, na minha infelicidade, no meu transe dilacerado. Sem fome, sem vontade. Com um sono desinteressado. Deixei-me afogar, jovem, iludida. Deixei-me ser tão melodramática como uma adolescente devia ser. Perdi-me nesses olhares furiosos ou destruídos ou vazios que dirigia às minhas paredes.
Mas essa minha completa destruição era já um só sopro do vento, inexistente, como um fantasma. Era um passado ultrapassado, que já não me podia magoar mais, como magoara infantilmente na altura. Erigi-me de novo, como um arranha-céus, como altiva, arrogante que sou e que voltei a ser. Lentamente, destrutivamente, corrosivamente. Sobrevivi.
Parei de amar. Literalmente. O meu coração, tão ironicamente romântico, não se lembrava de não passar por nada, nem por uma fugaz paixão. Claro que o ser humano não aguenta viver sem ‘’amor’’. Portanto, concentrei toda a minha energia amorosa em mim. Ganhei autorrespeito, apaixonei-me doidamente por mim. E assim vivi por meses e meses. Mesmo quando conheci quem quisesse que eu me abandonasse aos seus braços. Mas eu não queria, nem conseguia. Queria aquela minha liberdade simples. E não havia ultrapassado por completo aquela cama em que eu me desfizera meses antes. Não havia ultrapassado as minhas olheiras de um cansaço tão genuíno, tão triste.
Daí que me surpreenda por estar aqui, hoje, na noite cerrada, a cheirar o ar puro do Algarve e a fazer considerações sobre este mistério que é o amor. Mistério que eu afirmava ainda há bem pouco tempo não existir. Ser um resultado de reações químicas, de ilusões.
No entanto, aqui estou eu. Aqui estou eu, após absorver o ar perfeito, a pensar que me quero abandonar a um desses amores de Pedro e Inês, de Carlos e Maria Eduarda, de Romeu e Julieta. Cego, trágico, tão feliz por breves momentos que não importava a restante infelicidade. Não queria aprender a amar alguém. Queria sentir-me arrebatada, como nos contos de fada, queria algo irreal, queria ouvir música só de olhar para ele, queria vibrar só de passar perto dele. Não queria companheirismo nem estabilidade. Queria um romance curto, louco, que a deixasse miseravelmente feliz e depois a largasse e a abandonasse à poesia da tristeza. Queria inspiração, queria o paraíso.
Havia, no entanto, que ser realista. Já crescera e sabia que tais coisas não existiam. De uma forma ou outra tinha que aprender a amar. Porque apesar de o seu coração ter sido pisado miseravelmente, não sabia se alguma vez tinha amado. Não sabia se algum ser humano alguma vez tinha chegado a amar. Talvez o amor só viesse a essas criaturas que têm fins trágicos e que amam com tanto furor que o próprio amor é a sua morte. Talvez eu, cética, cínica, cansada e já gasta apesar da idade, não pudesse sentir esses horrores doces. Então só podia aspirar pelo verosímil, pelo aprender. Pela paixão. Porque prefiro a paixão. A paixão cria um fogo, e até que este se extinga somos como doentes, aspirando o corpo, a mente, tudo o que pertence ao outro. O amor, no entanto, imaginava eu, era um mero grito de solidão, uma mera amizade. Demasiado calmo, demasiado aborrecido para o meu coração que aspirava intensidade, romance.
Enfim, sorri eu, tornei-me nele. ‘’Ele’’. Essa criatura que morrera há tanto tempo e que levara grande parte de mim com ele. Ele costumava sorrir e lançar estas fórmulas filosóficas, sobre as quais deliberava a vida toda. Essa criatura que eu achei amar tão incessantemente como me era possível. Essa criatura à qual eu perdoara pacientemente as imbecilidades, mesmo que nunca me esqueça delas. Essa criatura que me deixa uma pena imensa de já não amar, como se essa amargura, essa mágoa de a amar fosse a roldana da minha vida. Que me deixa uma pena imensa desses dias já terem desaparecido, tão depressa, tão insolentemente. Desses dias que me deixaram como uma menina perdida.
E essa criatura suspirava estas belezas que eu na altura achava serem tolices de um coração demasiado velho e torturado. E agora suspiro-as eu. Delibero eu sobre o porquê de os homens amaram mais intensamente que as mulheres, de estarem mais prontos a deixar-se abandonar nestes caprichos do coração. Delibero sobre o que será o amor, se ele existe, onde estará. Delibero sobre o romance, sobre a música, sobre a paixão. Tudo o que sempre odiei.
Assim me transformou este perfume natural deste deserto cheio. Trouxe-me à mente esses amores. Tornou-me incrivelmente feliz, tendo eu a noção que tenho tudo o que a vida tem para oferecer. Fez-me desejar nunca sair daqui, perder-me algures na cor das flores, nas ondas calmas, nas guitarras que vibram nas ruas. Trouxe-me ao coração esse amor que eu sei poder atingir. Impingiu-me sonhos, pensamentos, desejos, que eu temo desaparecerem assim que eu regressar a casa. Neste momento, todavia, eu apenas penso nos reluzentes olhos verdes dele, que me olham deleitados. Nos braços dele à volta da minha cintura, ou das mãos dele no meu rosto, como se eu fosse a única pessoa neste mundo. No sorriso pretensioso dele, que eu desdenho e adoro tanto. Na voz dele, tão grave e baixa, que me sussurrava um milhar de palavras perdidas…
Só conseguia assim imaginar-me a deixar o mundo real e entrar nesse mundo paralelo, patético e ridículo a que pertencem os que amam. Se eu conseguisse, se eu aguentasse. Talvez pudesse amar como eles o fizeram. Ou como os românticos por natureza (dos quais aquela criatura era exemplar) , e não assim momentâneos e artificiais como eu, pensam poder. Não importava. Queria apenas não existir, queria apenas pensar num rosto o tempo todo. Queria pores-do-sol, queria fados chorosos, saudades, beijos na chuva, sorrisos espontâneos, por ser tão infinitamente feliz como estou neste momento, nesta varanda que fita o paraíso. Queria que esta sensação de amar tudo o que existe existisse. Queria que não fosse uma mera ilusão das circunstâncias. Queria poder amá-lo, se é que seria amor. Queria suspirar desesperadamente, queria ser uma menina perdida de novo.
Nesse dia não havia nada de mim que não implorasse por música calma, sagrada, que me enlevasse e me trouxesse de novo à Terra. Toda eu implorava por um fado choroso, cheio de saudade, por harmonias perfeitas e completas, que me fizesse transbordar.
A própria lua, vermelha e desfeita, implorava por essas melodias que despertam aquilo que nascemos a pensar que não tínhamos. E o meu peito, tão puramente cheio de lágrimas que eu nunca choraria, por mera nostalgia, melancolia, por mera e espontânea saudade, pedia por tudo o que fosse idílico. Ah! Como era irónico que o meu peito se debruçasse de uma janela de indiferença e pedisse por tudo o que lá fora passava! Pedia, e digo isto com a alma tão tocada que nem me embaraça, por um desses romances idílicos, paradisíacos que não existem senão nos sonhos das crianças, nos contos de fadas. Queria um conto de fadas, como os que via na infância, em que tudo era tão loucamente intenso, tão musical, que nada mais importava, que era possível abandonar tudo.
E eu estava farta. Estava farta desse cinzento que me invadira desde que deixara de amar, o que quer que isso seja. Lembrava assim a minha pobre alma, o meu pobre espírito, quando fora completamente dilacerado pela primeira vez.
Até aí o meu nobre coração estava intocado. E, passados uns meses, esse meu intocado coração foi rasgado. E chorou, chorou as lágrimas que eu nunca pude chorar. Rasgado, destruído, manteve-me sem fome, mergulhada num transe, num sono, como se o mundo tivesse parado e eu pudesse passar o resto da minha vida naquela cama que já estava farta dos meus olhares fixos nas paredes, inexpressivos, dos meus olhos que se desfaziam de desilusão, que se despediam da minha juventude. Farta dos meus olhos tão cheios de vida, completamente mortos, completamente vazios. Exatamente como eu me sentia. Mergulhei por dias longos na minha miséria, na minha infelicidade, no meu transe dilacerado. Sem fome, sem vontade. Com um sono desinteressado. Deixei-me afogar, jovem, iludida. Deixei-me ser tão melodramática como uma adolescente devia ser. Perdi-me nesses olhares furiosos ou destruídos ou vazios que dirigia às minhas paredes.
Mas essa minha completa destruição era já um só sopro do vento, inexistente, como um fantasma. Era um passado ultrapassado, que já não me podia magoar mais, como magoara infantilmente na altura. Erigi-me de novo, como um arranha-céus, como altiva, arrogante que sou e que voltei a ser. Lentamente, destrutivamente, corrosivamente. Sobrevivi.
Parei de amar. Literalmente. O meu coração, tão ironicamente romântico, não se lembrava de não passar por nada, nem por uma fugaz paixão. Claro que o ser humano não aguenta viver sem ‘’amor’’. Portanto, concentrei toda a minha energia amorosa em mim. Ganhei autorrespeito, apaixonei-me doidamente por mim. E assim vivi por meses e meses. Mesmo quando conheci quem quisesse que eu me abandonasse aos seus braços. Mas eu não queria, nem conseguia. Queria aquela minha liberdade simples. E não havia ultrapassado por completo aquela cama em que eu me desfizera meses antes. Não havia ultrapassado as minhas olheiras de um cansaço tão genuíno, tão triste.
Daí que me surpreenda por estar aqui, hoje, na noite cerrada, a cheirar o ar puro do Algarve e a fazer considerações sobre este mistério que é o amor. Mistério que eu afirmava ainda há bem pouco tempo não existir. Ser um resultado de reações químicas, de ilusões.
No entanto, aqui estou eu. Aqui estou eu, após absorver o ar perfeito, a pensar que me quero abandonar a um desses amores de Pedro e Inês, de Carlos e Maria Eduarda, de Romeu e Julieta. Cego, trágico, tão feliz por breves momentos que não importava a restante infelicidade. Não queria aprender a amar alguém. Queria sentir-me arrebatada, como nos contos de fada, queria algo irreal, queria ouvir música só de olhar para ele, queria vibrar só de passar perto dele. Não queria companheirismo nem estabilidade. Queria um romance curto, louco, que a deixasse miseravelmente feliz e depois a largasse e a abandonasse à poesia da tristeza. Queria inspiração, queria o paraíso.
Havia, no entanto, que ser realista. Já crescera e sabia que tais coisas não existiam. De uma forma ou outra tinha que aprender a amar. Porque apesar de o seu coração ter sido pisado miseravelmente, não sabia se alguma vez tinha amado. Não sabia se algum ser humano alguma vez tinha chegado a amar. Talvez o amor só viesse a essas criaturas que têm fins trágicos e que amam com tanto furor que o próprio amor é a sua morte. Talvez eu, cética, cínica, cansada e já gasta apesar da idade, não pudesse sentir esses horrores doces. Então só podia aspirar pelo verosímil, pelo aprender. Pela paixão. Porque prefiro a paixão. A paixão cria um fogo, e até que este se extinga somos como doentes, aspirando o corpo, a mente, tudo o que pertence ao outro. O amor, no entanto, imaginava eu, era um mero grito de solidão, uma mera amizade. Demasiado calmo, demasiado aborrecido para o meu coração que aspirava intensidade, romance.
Enfim, sorri eu, tornei-me nele. ‘’Ele’’. Essa criatura que morrera há tanto tempo e que levara grande parte de mim com ele. Ele costumava sorrir e lançar estas fórmulas filosóficas, sobre as quais deliberava a vida toda. Essa criatura que eu achei amar tão incessantemente como me era possível. Essa criatura à qual eu perdoara pacientemente as imbecilidades, mesmo que nunca me esqueça delas. Essa criatura que me deixa uma pena imensa de já não amar, como se essa amargura, essa mágoa de a amar fosse a roldana da minha vida. Que me deixa uma pena imensa desses dias já terem desaparecido, tão depressa, tão insolentemente. Desses dias que me deixaram como uma menina perdida.
E essa criatura suspirava estas belezas que eu na altura achava serem tolices de um coração demasiado velho e torturado. E agora suspiro-as eu. Delibero eu sobre o porquê de os homens amaram mais intensamente que as mulheres, de estarem mais prontos a deixar-se abandonar nestes caprichos do coração. Delibero sobre o que será o amor, se ele existe, onde estará. Delibero sobre o romance, sobre a música, sobre a paixão. Tudo o que sempre odiei.
Assim me transformou este perfume natural deste deserto cheio. Trouxe-me à mente esses amores. Tornou-me incrivelmente feliz, tendo eu a noção que tenho tudo o que a vida tem para oferecer. Fez-me desejar nunca sair daqui, perder-me algures na cor das flores, nas ondas calmas, nas guitarras que vibram nas ruas. Trouxe-me ao coração esse amor que eu sei poder atingir. Impingiu-me sonhos, pensamentos, desejos, que eu temo desaparecerem assim que eu regressar a casa. Neste momento, todavia, eu apenas penso nos reluzentes olhos verdes dele, que me olham deleitados. Nos braços dele à volta da minha cintura, ou das mãos dele no meu rosto, como se eu fosse a única pessoa neste mundo. No sorriso pretensioso dele, que eu desdenho e adoro tanto. Na voz dele, tão grave e baixa, que me sussurrava um milhar de palavras perdidas…
Só conseguia assim imaginar-me a deixar o mundo real e entrar nesse mundo paralelo, patético e ridículo a que pertencem os que amam. Se eu conseguisse, se eu aguentasse. Talvez pudesse amar como eles o fizeram. Ou como os românticos por natureza (dos quais aquela criatura era exemplar) , e não assim momentâneos e artificiais como eu, pensam poder. Não importava. Queria apenas não existir, queria apenas pensar num rosto o tempo todo. Queria pores-do-sol, queria fados chorosos, saudades, beijos na chuva, sorrisos espontâneos, por ser tão infinitamente feliz como estou neste momento, nesta varanda que fita o paraíso. Queria que esta sensação de amar tudo o que existe existisse. Queria que não fosse uma mera ilusão das circunstâncias. Queria poder amá-lo, se é que seria amor. Queria suspirar desesperadamente, queria ser uma menina perdida de novo.
Sorri,
mais uma vez impossivelmente feliz. Queria ser jovem outra vez. Implorava pela
juventude que perdera no último conto de fadas, que se afastava muito de conto
de fadas. E, lembrando-me de repente, agradeci a essa criatura a que chamei
‘’amor’’ noutra vida. Agradeci-lhe pelas palavras que agora faziam sentido.
Agradeci-lhe por me ter trazido, de certa forma, a minha vida de volta.
Agradeci-lhe, quase, por me ter arruinado. Porque agora tudo era melhor. Mais
intenso, mais perfeito, mais livre. E eu já não era uma pobre menina estouvada
como era na altura. Agora conseguia ser o que sempre quis. E,
assim, a ouvir as cigarras e a sentir a leve brisa da perfeição, senti-me
encantada e para sempre em paz com a vida, com o coração. E, não parando de sorrir,
entreguei-me à felicidade de uma alma limpa.
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