Alma Velha

''És uma alma velha'', diz ela, com o orgulho a brilhar nos olhos, ''como se não fosses deste mundo, desta era. Pessoas como tu não existem.''
Depreendo o motivo pelo qual ela diz aquilo com tanto ênfase e com tanto entusiasmo. Sorri-lhe, os meus olhos cheios de compreensão e, provavelmente, compaixão.
Assim que me vejo sozinha, defronto-me com a realidade agridoce. Eu era uma alma velha. É um pouco irónico para alguém que tem um medo petrificante de crescer, para alguém a quem o futuro e a ideia de ser adulta a aterroriza. E, no entanto, tenho uma alma velha. Sou uma alma velha.
Não era nada que eu já não soubesse. Nasci crescida, nunca fiz asneiras, nunca fiz birras, compreendo o sentido do certo e do errado desde muito cedo, nunca me atrevi a nada porque sempre tive demasiada noção das consequências. Nasci com 30 anos. Entristece-me que assim seja, porque apenas significa que nunca fui criança, que nunca fui tão inocente, tão crente, tão feliz. Nasci uma adulta pequena, um anjo já amargurado pela vida. Não me conseguia impedir de ter pena de mim mesma.
Mesmo agora, nesta plenitude da adolescência, eu sabia que era uma alma velha. Via todos à minha volta a entreterem-se com coisas que eu considerava apenas mesquinhas, patéticas, a irritarem-se e a chorarem pelo mínimo impasse. E eu, já amargurada e azedada pela vida, apenas os fito com o rancor de uma velha rabugenta. Apenas os odeio e desprezo silenciosamente por sentirem tudo com o fervor e a intensidade de quem não consegue controlar as hormonas, enquanto que eu apenas consigo sentir tudo com a resignação de alguém que sabe, que reconhece, que não vai sentir mais que aquilo o resto da vida.
Já sabia que era uma alma velha porque vejo tudo com a clareza e lucidez de alguém que já aprendeu a ser racional o suficiente para admitir que aquilo porque essas crianças da minha idade anseiam não existe, e que elas acabam por o inventar nas suas mentes. Que aquilo porque elas se chateiam e desanimam é patético, e não faz sentido nenhum.
Nunca fui uma criança. As poucas asneiras que fiz na minha curta vida foram induzidas por falta de autocontrolo que eu aprendi a ter. Sempre soube que não existem contos de fadas, que não se ama inconsequentemente, que nunca se tem aquilo porque se anseia. Eu sei-o, eles não. Eles continuam a proclamar o amor verdadeiro e a dor que eles sentem dessa forma tão intensa, a ter a certeza que vão sempre ter o que querem, que a vida deles vai importar neste mundo infinito. Não sabem que nenhum de nós é nada, por muito que faça. Que o amor não passa de uma ilusão. Que essa dor não passa de amuo.
E é por isso, por esse contraste entre mim e eles, que eu percebo que apesar da falta de rugas no meu rosto, sou eternamente velha, eternamente resignada, eternamente restrita. Não sei se detesto não ser deste mundo ou desta era, parecer muito mais velha do que sou. Afinal, é isso que me faz saber que todos eles são uns idiotas, que vão acabar por cair de cara inúmeras vezes. É isso que faz de mim especial: ter a racionalidade, a distância e a ponderação para julgar as situações. É isso que vai fazer de mim alguém de sucesso.
O problema é: provavelmente também vai ser isso que vai fazer de mim alguém infeliz.
Pode ser que noutro mundo, numa outra vida, eu tenha tido a hipótese de ter a idade que tenho.

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