Papéis de teatro

Não fui feita para encaixar num determinado papel. Para sorrir e acenar e para preencher os requisitos da típica adolescente. 
Não me conseguiria estupidificar nem que o quisesse. Nasci peculiar, fui educada de forma peculiar. As pessoas que me deram o sangue sentam-se à volta da mesa e discutem pacifica e culturalmente. Nunca, na minha infância, ouvi, que não fossem debates, explicações. Nunca se levantou a voz, nunca se disse um palavrão. Fui educada por pessoas ligadas em excesso à mania de serem burgueses e aristocratas, apesar de nem lá perto andarem. O que tem os seus prós e os seus contras. Aliás, o único contra que tem é que eu não consigo disfarçar o que sou perante outras pessoas da mesma faixa etária, não consigo disfarçar a cultura, a inteligência ou a curiosidade. Porque no meu mundo, manifestações de tudo isso são pão nosso de cada dia.
Portanto, não pude ser a típica criança, sendo que até a brincar com Barbies os meus enredos eram baseados em Shakespeare e não em novelas brasileiras. Não consigo saber seja o que for sem o analisar em todas as facetas do meu cérebro e o relacionar com o irrelacionável. Não consigo fingir que não adoro ler. O que fez de mim uma criança atípica e uma ainda mais atípica adolescente. A minha sorte na adolescência, foi que acabei por encontrar o sítio para mim, o sítio onde as discussões e debates são mais usuais. Os típicos dramas de adolescentes mantém-se, mas, nas situações certas, existe uma certa consciência civilizacional, uma certa cultura e muitas opiniões refinadas.
Isto para dizer que não consigo caber em nenhum papel. Não no papel de adolescente melodramática, e que enfatiza tudo o que é irrelevante na vida, não no papel de filha/irmã/sobrinha/neta/prima-prodígio porque não sou uma menina conservadora de boas famílias, se bem que acho que começo a cair nesses parâmetros a cada ano que passa, não no papel de revolucionária, porque sou conservadora em muitos aspetos, não no papel de quem acredita em contos de fadas porque sou demasiado racional, não no papel de menina da cidade, porque me perco sempre que vou a uma, não no papel de menina de terra pequena porque a minha mentalidade não é tão fechada e os meus sonhos vão bem para além da pequena terra em que vivo e bem para além de noções de fazer uma família, assentar e desperdiçar a vida,não no papel de mulher porque ainda sou uma menina.
E talvez por não caber em papel algum, também não caibo na moral típica, na religião comum, nas opiniões consideradas ''certas'' e nos dramas típicos.
Não acho que o mundo seja a preto e branco e que haja um delimitado ''certo'' ou ''errado''. Não acho que a repulsa que certas situações nos provocam nos deva cegar ao ponto de não a conseguirmos julgar corretamente.
Não acho que exista algo imperdoável. E talvez essa seja a minha parte religiosa a falar, ou talvez seja a parte de mim que aprendeu que tudo é cinzento. Acho que chorar em público demonstra uma fraqueza de espírito tão profunda que é quase colossal. Sofrer é em silêncio. Sofrer é em privado. E o controlo sobre as nossas emoções é imperial. Estou farta de que digam que as mulheres são mais sensíveis. É verdade, mas isso não quer dizer que não saibamos separar as situações, não saibamos o que é adequado e não tenhamos autocontrolo.
A cada dia o meu feminismo torna-se mais amargurado, mas conciliador e a cada dia rezo mais aos céus para nunca me tornar banal. Não quero ser a adolescente típica, não quero ter a vida típica. Quero excelência, nunca banalidade.
Tenho um medo infinito de desperdiçar o meu talento. Pode parecer ridículo e narcisista de se dizer, mas sei que fui feita para grandes coisas, e preciso de as concretizar, senão morrerei. Não quero um marido, quero uma carreira de sucesso, quero uma vida completamente independente, quero atingir a grandeza e divindade.
E poderia ter também um companheiro, mas seria por pouco tempo. A monogamia é uma prisão que impede os seres humanos de se tornarem deuses, de atingirem o seu máximo potencial, porque estão presos a uma só situação, uma só pessoa, a vida toda. O nosso cérebro não se pode conformar, tem que se manter em constante movimento. Portanto, podemos viver e/ou casar com alguém, ser feliz durante uns anos, mas só enquanto essa relação nos inspirar, nos estimular física e intelectualmente. Uns meses, uns anos. Depois temos de partir, porque não podemos estagnar um cérebro com capacidade de grandeza.
Daí que não fui feita para encaixar um determinado papel. Fernando Pessoa também não o foi, e por isso criou inúmeras pessoas para encaixarem em inúmeros papéis. E, tal como ele, não tenciono desperdiçar a minha ''loucura'', não tenciono conformar-me com o banal. Deixemos isso para as pessoas vulgares. EU aponto para o infinito.
Existe um único e enorme problema nesta minha forma atípica de ser: entro demasiado dentro de mim. Passo demasiado tempo perdida nos meus inúmeros pensamentos, nas minhas discussões comigo mesma, nos meus raciocínios. E nunca ninguém perceberá nada disso, nunca ninguém perceberá o meu amor pelo silêncio e pela contemplação, enquanto mergulho em divagações. O mundo gosta demasiado de falar, principalmente sobre estupidezes. Nunca ninguém será aquilo que eu quero que seja em termos intelectuais. E isso significa uma eternidade de solidão. Uma cruzada enorme e sozinha ou então com pessoas que nunca vão compreender.
Assim será porque eu não sei fingir ser o que não sou.
E eu não sou típica, vulgar, banal ou comum.

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