Delirante ebriedade
A rapariga que me fita faz o mesmo movimento de pescoço que eu. Tem os olhos inchados de um cansaço não existente, as réstias de maquilhagem borratada a espalharem-se à volta dos seus olhos, a pele de um pálido cansado, os lábios inchados, o cabelo revolto. Parece que lhe sugaram a vida. Suspirei e franzi o sobrolho. A rapariga fez o mesmo. Lavei a cara na esperança de que as minhas máculas desaparecessem. Algumas ficaram disfarçadas, mas a maior parte não foi a lado nenhum.
O enjoo insistente que me assolava o estômago era a única coisa que me assegurava que a noite anterior não tinha sido um mero delírio de uma mente ensonada. Os arranhões nas minhas pernas e pés tinham o mesmo efeito. Contorci o rosto num desagrado tão profundo que tive a certeza de que ia ficar com rugas.
Disseram-me que quando nos vemos no espelho, vemos uma versão mais nova de nós próprios. Se assim é e a versão mais nova de mim parece estar nos seus muito desgastantes e exaustos 30 anos, então a versão real de mim deve ser um caco. É uma pena. Tanto potencial desperdiçado numa pessoa que não o merece. Eu costumava ter autorrespeito e dignidade há muito tempo. Não assim há tanto tempo. No entanto, via-se perfeitamente pelo meu aspeto, pela velocidade com que eu decidira afogar a minha mente (a minha tão aguda e genial mente), pela forma como me estragava, que deixei de os ter. Quando é que me tornei uma pessoa dessas? Uma pessoa que não se importa de se perder? Uma pessoa que vê tão pouco na vida que tem de parar de ver por uns momentos?
Disse a mim própria que precisava de me esquecer de algumas coisas. De quê? Da minha vida estável, tranquila e fantástica? Não há nada de que eu precise de me esquecer. Não há desculpas. Simplesmente decidi matar-me um pouco. Simplesmente decidi ser precisamente como tantas pessoas que eu conheço, pessoas fracas ou que simplesmente não têm muitas aspirações na vida. Pessoas que não dão muita consideração à ponderação, à integridade, à classe. Talvez esteja a ser injusta. Não importa.
Suspirei mais uma vez.
Depois de um banho e de tentar impingir comida ao meu estômago revoltado, fiquei com melhor aspeto. Não substancialmente, mas o suficiente para me sentir de novo humana e no controlo. Tentei recuperar algumas memórias. Flashbacks traziam-me pequenas imagens, pequenas palavras, pequenos gestos. Não o suficiente para reconstituir a noite, mas o suficiente para apagar um pouco da desilusão que eu sentia por mim própria.
Já várias horas depois de ter acordado, voltei a fitar-me ao espelho. E voltei a suspirar desagrado. A rapariga que me fitava imitou-me. Os seus pesados olhos escuros fitaram os meus por muito tempo. Ambas entreabrimos os lábios num gesto de frustração, para além da já conhecida deceção.
Sinto-me demasiado velha para estas brincadeiras de criança. Sinto-me demasiado nova para estas brincadeiras de adultos.
De repente, a menina de olhos escuros que vive no espelho sorriu-me. Um sorriso de humor e quase alegria. Determinadas palavras que eu dissera na noite anterior desfilaram no meu cérebro. O sujeito delas era alguém. Alguém há um ano. O mesmo alguém em quem eu me apoiava na sobriedade, quando estou bêbada de dor ou saudade ou raiva ou felicidade. E, curiosamente, não me esqueci dele na ebriedade. Os olhos que me fitavam no espelho tornaram-se verdes, de um verde incandescente. E eu lembrei-me. Do pequeno papel escrito na minha mão. Ri-me para o espelho.
E depois abanei a cabeça, relembrada pelo meu aspeto do que fizera a mim própria. Não me referia só do que fizera a mim própria na noite anterior. O que tenho feito a mim própria há bem mais de um ano. Mas particularmente o que tenho feito a mim própria nos últimos 4 meses. Sei que me tenho em demasiado consideração, mas também sei que tudo isso é tão tristemente inferior a mim. As inseguranças, as instabilidades, as figuras tristes. Há 4 meses, eu poderia caminhar nos chãos que me pertencem com o queixo erguido e uma expressão de domínio absoluto. Agora terei de o fazer de cabeça baixa. Agora, de cada vez que vejo um conhecido, tenho de me esconder.
Não posso apagar o passado. Não posso apagar todo este tempo em que estive mergulhada em pânico patético ou, mais recentemente, em pura humilhação. Voltarei a caminhar em arrogância como se reinasse aquilo que não me pertence? Ou cairei no esquecimento e na perda de autoconfiança? Nem sabia que isso me era possível.
Enfim. Neste momento nada disso importa. Irá voltar a importar daqui a pouco tempo, mas por agora estou salva. Por agora posso ser uma confusão por dentro e por fora. Por agora posso-me esquecer de quem sou: a miúda altiva e composta, com a mente de uma genialidade afiada e a atitude de quem é a rainha do mundo.
O enjoo insistente que me assolava o estômago era a única coisa que me assegurava que a noite anterior não tinha sido um mero delírio de uma mente ensonada. Os arranhões nas minhas pernas e pés tinham o mesmo efeito. Contorci o rosto num desagrado tão profundo que tive a certeza de que ia ficar com rugas.
Disseram-me que quando nos vemos no espelho, vemos uma versão mais nova de nós próprios. Se assim é e a versão mais nova de mim parece estar nos seus muito desgastantes e exaustos 30 anos, então a versão real de mim deve ser um caco. É uma pena. Tanto potencial desperdiçado numa pessoa que não o merece. Eu costumava ter autorrespeito e dignidade há muito tempo. Não assim há tanto tempo. No entanto, via-se perfeitamente pelo meu aspeto, pela velocidade com que eu decidira afogar a minha mente (a minha tão aguda e genial mente), pela forma como me estragava, que deixei de os ter. Quando é que me tornei uma pessoa dessas? Uma pessoa que não se importa de se perder? Uma pessoa que vê tão pouco na vida que tem de parar de ver por uns momentos?
Disse a mim própria que precisava de me esquecer de algumas coisas. De quê? Da minha vida estável, tranquila e fantástica? Não há nada de que eu precise de me esquecer. Não há desculpas. Simplesmente decidi matar-me um pouco. Simplesmente decidi ser precisamente como tantas pessoas que eu conheço, pessoas fracas ou que simplesmente não têm muitas aspirações na vida. Pessoas que não dão muita consideração à ponderação, à integridade, à classe. Talvez esteja a ser injusta. Não importa.
Suspirei mais uma vez.
Depois de um banho e de tentar impingir comida ao meu estômago revoltado, fiquei com melhor aspeto. Não substancialmente, mas o suficiente para me sentir de novo humana e no controlo. Tentei recuperar algumas memórias. Flashbacks traziam-me pequenas imagens, pequenas palavras, pequenos gestos. Não o suficiente para reconstituir a noite, mas o suficiente para apagar um pouco da desilusão que eu sentia por mim própria.
Já várias horas depois de ter acordado, voltei a fitar-me ao espelho. E voltei a suspirar desagrado. A rapariga que me fitava imitou-me. Os seus pesados olhos escuros fitaram os meus por muito tempo. Ambas entreabrimos os lábios num gesto de frustração, para além da já conhecida deceção.
Sinto-me demasiado velha para estas brincadeiras de criança. Sinto-me demasiado nova para estas brincadeiras de adultos.
De repente, a menina de olhos escuros que vive no espelho sorriu-me. Um sorriso de humor e quase alegria. Determinadas palavras que eu dissera na noite anterior desfilaram no meu cérebro. O sujeito delas era alguém. Alguém há um ano. O mesmo alguém em quem eu me apoiava na sobriedade, quando estou bêbada de dor ou saudade ou raiva ou felicidade. E, curiosamente, não me esqueci dele na ebriedade. Os olhos que me fitavam no espelho tornaram-se verdes, de um verde incandescente. E eu lembrei-me. Do pequeno papel escrito na minha mão. Ri-me para o espelho.
E depois abanei a cabeça, relembrada pelo meu aspeto do que fizera a mim própria. Não me referia só do que fizera a mim própria na noite anterior. O que tenho feito a mim própria há bem mais de um ano. Mas particularmente o que tenho feito a mim própria nos últimos 4 meses. Sei que me tenho em demasiado consideração, mas também sei que tudo isso é tão tristemente inferior a mim. As inseguranças, as instabilidades, as figuras tristes. Há 4 meses, eu poderia caminhar nos chãos que me pertencem com o queixo erguido e uma expressão de domínio absoluto. Agora terei de o fazer de cabeça baixa. Agora, de cada vez que vejo um conhecido, tenho de me esconder.
Não posso apagar o passado. Não posso apagar todo este tempo em que estive mergulhada em pânico patético ou, mais recentemente, em pura humilhação. Voltarei a caminhar em arrogância como se reinasse aquilo que não me pertence? Ou cairei no esquecimento e na perda de autoconfiança? Nem sabia que isso me era possível.
Enfim. Neste momento nada disso importa. Irá voltar a importar daqui a pouco tempo, mas por agora estou salva. Por agora posso ser uma confusão por dentro e por fora. Por agora posso-me esquecer de quem sou: a miúda altiva e composta, com a mente de uma genialidade afiada e a atitude de quem é a rainha do mundo.
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