Runway

Preciso de partir.
Não posso ficar nem mais um segundo. Sou capaz de enlouquecer.
Já imaginei a minha fuga milhões vezes ao longo dos anos. E creio que chegou o momento. Preciso de sair, viver e ser livre. Não consigo ficar aqui, onde não posso ser.
Não pertenço aqui. Percebo agora que nunca pertenci. Não pertenço a este lugar, a estas pessoas, a esta vida. Nunca pertenci a nada que não a mim mesma. Provavelmente nem isso.
Estou cansada de fingir que sou igual a toda a gente. Estou cansada de viver no meio da monotonia e pensar que terei de me encaixar nela. Por isso, preciso de sair daqui e de encontrar um lar.
Nunca tive um lar, nunca me senti em casa em lado nenhum. O único lar que poderei ter é onde não saibam quem sou. Onde, aliás, eu não seja ninguém. Um sítio onde não importe o nosso nome, o nosso passado, a nossa idade, o nosso género, a nossa condição social. Um sítio onde eu seja completamente livre, de tudo e de toda a gente. Onde eu seja apenas um ser humano a lidar com a grandeza do Universo. Mas esse sítio não existe, porque enquanto existirem pessoas existirão conceitos e com eles preconceitos.
Portanto, preciso de estar sozinha. Para sempre. Ou então preciso de estar constantemente a fugir de um sítio para o outro, a tentar encontrar um lar, a tentar encontrar um pouco de liberdade. Preciso de ser capaz de respirar sem este peso no peito, preciso de ser capaz de me esquecer de quem sou.
Preciso de partir.
Não consigo lidar com qualquer tipo de opressão. Não consigo estar presa a mais nada. Preciso de sair daqui e de não voltar a olhar para trás.
No entanto, eu sei que não conseguiria. Eventualmente, iria olhar para trás. Eventualmente, descobriria que a liberdade não existe ou que existe mas que estou farta dela, e tentaria voltar para o berço. E a porta estaria trancada para sempre.
Estou farta de temer que um dia chegue e a porta esteja trancada e eu esteja despojada de tudo. Estou farta de não poder controlar nada.
Preciso de partir. Mas sair deste lugar não seria suficiente. Porque ainda teria o meu nome, o meu sangue, o meu género e a minha personalidade. Preciso de me livrar de tudo isso. Preciso de começar de novo como uma pessoa nova, preciso de ser outra pessoa. Preciso de me livrar de mim. Eu sou o meu maior fardo. Preciso de sair do meu corpo, do meu rosto, do meu cérebro, do meu coração. Preciso de ser qualquer outra pessoa que seja mais parecida com as outras. Ou qualquer outra pessoa que não se importa de ser completamente diferente.
Preciso de silêncio. Para conseguir finalmente pensar. Silêncio eterno. Se bem que tenho medo de quando ficar a sós com os meus pensamentos. Sou capaz de descobrir o que não quero descobrir.
Silêncio e liberdade eterna, sem correntes, sem convenções, sem hipocrisia, sem aparências, sem existência.
Preciso de correr numa praia de areia branca infinita de braços abertos, preciso de dançar com o vento até cair, de me perder numa vida que outros chamariam boémia, de amar sem nomes e de forma fugidia e intensa, de respirar ares imensamente puros nos cumes das maiores montanhas, de passar noites em claro a pensar.
Preciso de partir, de fugir, de correr para o outro lado do mundo. Preciso de não sentir mais nada para além de fascínio. Preciso de ser invisível, ou antes, irrelevante.
Preciso de dizer adeus a toda esta vida impregnada de mim e das minhas memórias.
Preciso de uma vida ébria de silêncio, razão, leveza e inexistência. Preciso de uma vida cheia de pessoas que também não querem existir e pessoas que não tentam que eu lhes pertença. Não sou de nada nem de ninguém. Nem minha sou.
Preciso de partir. E de não levar qualquer tipo de mala comigo.

Comentários

  1. Claro que amo meus semelhantes, mas onde enontrá-los. Mario Quintana, poeta.
    isidro,pereira@gmail.com

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