Dependência
Este véu negro dança sobre o meu discernimento. O meu senso comum parece hipnotizado, embalado pelos movimentos desse mesmo véu, enfeitiçado pelas imagens que este me mostra.
Uma parte de mim ainda me procura dentro deste corpo, dentro desta mente. Ainda procura a minha convicção, a minha teimosia, a minha indignação e a minha tendência para explodir com força e rapidez. Mas estas minhas características escondem-se algures atrás do véu.
Não perdi a capacidade de me enraivecer, de discutir com um tom afiado e palavras aguçadas, de me concentrar ou de ser a pessoa que sou. Só que agora faço, penso e digo tudo de forma mais leve, mais suave, mais doce e mais gasosa.
Os meus sentidos estão enleados numa ilusão, numa bela e demasiado indulgente ilusão, diga-se de passagem. Os meus olhos só veem a mesma sequência de imagens, mesmo quando estão cegos, os meus ouvidos só ouvem um som, o meu nariz só sente um cheiro, as minhas mãos só querem um toque, e o meu paladar só quer um sabor.
A minha sanidade tem dificuldade em manter-se à superfície. E as minhas emoções têm dificuldade em manterem-se estáveis. De facto, andei uns tempos insana, mas a minha consciente insanidade foi temporária, graças a Deus, porque a minha personalidade amarga e agressiva lembrou-se da sua própria existência.
Agora que voltei a recuperar alguma da minha mente dou por mim a ser tudo aquilo que achei que não voltaria a ser. Crédula. Desejosa. Apaixonada.
Transformei-me num acessório de braço. E nem foi, de todo, por ação da pessoa a quem o braço pertence, mas por ação da minha própria superficial imaginação. Sou um acessório bonito, que embeleza um braço honrado. No entanto, sou demasiado inteligente, demasiado cética, e demasiado tudo para ser um acessório. Tal como o braço que me agarra. Estou feliz. Talvez seja essa a mudança, visto que os meus dias, desde há muito tempo, e refiro-me a muito tempo mesmo, que são apenas cansaço, tédio e uma raiva rancorosa. Sou a pessoa que sou há tanto tempo que já não sei ser outra pessoa. Não sei ser leve, suave e ridícula. Mas, pela primeira vez desde que deixei de brincar com princesas e Barbies, que quero aprender a ser tudo isso. Ele chama-lhe “pequenas mudanças”, mas ele não faz ideia do tamanho que essas mudanças têm. Nem eu sei muito bem, até porque o meu cérebro não tem pensado em muito no último mês.
Se bem que, se isto é felicidade, então a felicidade é um bicho quase tão bipolar como eu. Quer dizer, não me interpretem mal, eu sei o que é felicidade, já a senti, mas deste tipo nem por isso, ou pelo menos já não sentia há tanto tempo que a minha infalível memória começa a esquecer-se. É bipolar, este tipo de felicidade, porque eu não ando sempre feliz. A alternância entre a alegria, o nervosismo e a melancolia é incrivelmente rápida e deixa-me com um humor que passa rapidamente de dócil para feroz. Isto baseia-se nesta velha questão que é o excesso de confiança depositado, e o excesso de desconfiança que faz parte do pacote. Não é necessariamente uma desconfiança da pessoa, como uma desconfiança do ser humano em geral. Afinal, somos todos animais, cometemos erros e temos impulsos. Incluindo eu, imagine-se só. No entanto, apesar desta desconfiança não me ser estranha, é a primeira vez que me provoca qualquer tipo de incómodo. Geralmente, eu resigno-me com essa corrupção moral do ser humano, mas desta vez essa mera ideia parece o espetar de uma agulha no meu cérebro. Talvez porque não tenho propriamente tendência a apegar-me, depender ou até apreciar outro ser humano, e mesmo quando o faço, é com cautela e uma dose muito grande de “tomar as pessoas por garantidas”. E, desta vez, as hormonas que regem estas emoções a cujo conjunto as pessoas costumam designar por amor, que se baseia numa série de reações químicas no nosso muito complexo cérebro, não me estão a dar esses ingredientes.
E, portanto, estou completamente desarmada e o meu crítico, inteligente e cínico espírito está envolto num nevoeiro tão cerrado, que há a possibilidade de voltar D. Sebastião. Não tenho qualquer tipo de travões, de resguardas, ou de cobertores. Estou completamente exposta e vou a alta velocidade para o precipício de que me vou despenhar desastrosamente. A minha bomba de sangue está sem redomas. E eu estou completamente impotente perante a entrada de forças externas.
A minha força beligerante foi derrotada. E tudo o que eu posso fazer, condenada a espectadora da minha própria desgraça, é ser amarrada por este véu da ignorância, por este véu da perdição.
E perder-me absolutamente nos olhos dele.
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