Indolor

E ali estava ela a defender a sua paixão como se fosse a sua vida.
E eu, revirando os olhos e discutindo, exibia a minha opinião já tão óbvia e gasta sobre aquele assunto. Todas as palavras que saíam da minha boca eram cuidadas e pensadas, e a tese que elas formavam era uma tese que eu elaborara nova, e pela qual era e sempre fui apaixonada.
Não tinha qualquer pena de destruir o conto de fadas que ela criara nem tinha pena de saber estar a gastar a minha voz em vão. Há que defender aquilo em que acreditamos, independentemente se vale a pena ou não. Vale sempre a pena, e terminem vocês.
Tinha pena, no entanto, de já não fazer ideia do que ela estava a falar com os olhos brilhantes e lacrimejosos. Já não sabia do que ela falava há muito tempo, porque já não sentia o que ela sente há muito tempo. Nem eu sei há quanto. Nem eu me lembro, sinceramente, quando foi a última vez, porque o tempo atravessou-me e todas as memórias estão já borratadas, apagadas e já não me dizem (e finalmente digo isto com honestidade) nada. Já é tudo um mero borrão de indiferença.
E mesmo antes desse borrão de indiferença já não me consigo lembrar. Lembro-me da sensação de sarilhos, da sensação de estar fora do meu corpo e de estar a fazer algo errado, tal como me lembro do arrependimento e da vergonha.
Mas não me lembro de nenhuma emoção forte. Não me lembro da sensação de estar a flutuar e de ser baleada de felicidade, tal como não me lembro do meu antro da tortura e da sensação de uma dor tão contundente que eu não imaginava que fosse passar. E afinal passou ao ponto de eu já não ter uma ponta de recordação dela, e ao ponto de me arrepender terrivelmente da maneira como agi. Devia ter explorado a minha raiva e a minha dor, em vez de a reprimir para parecer bem e maturo. Devia-me ter passado. Devia ter feito isto, devia ter feito aquilo... Ninguém devia ter saído impune. Mas eu estava demasiado envergonhada da situação e das minhas próprias emoções. Eu queria estar zangada e agi muitas vezes como se estivesse, mas a verdade é que me sentia meramente impotente.
Além disso, já não sou essa rapariga. A rapariga que sou agora já não sente essas sensações intensas, já não se deixa levar por elas. Além disso, quando a rapariga que eu fui ignoraria, desprezaria e escarneceria, agora eu expludo. A rapariga que eu fui era uma boneca sem emoções. A rapariga que eu sou tem muitas emoções e 60% delas são uma raiva que não se cala, mas explode. A rapariga que eu sou teria perdido a cabeça, teria disparatado um pouco. E, por fim, ao saber que tinha feito a outra pessoa sentir-se pior, ou pelo menos mais desconfortável, sentir-se-ia melhor. Não curada, mas melhor. Talvez o problema tenha sido reprimir o que não se deve reprimir.
É essa a única emoção intensa de que tenho a mínima memória: a raiva. Uma raiva que entra pela pele e se instala nas veias, faz o sangue borbulhar e me deixa agastada, exausta e frustrada. Mas paixão, ou tristeza? Não me lembro. Já não sei o que são.
Talvez se aproxime a altura de eu me relembrar e de eu ultrapassar a apatia que me cercou todos os sentidos. Talvez não. A paixão dói porque é um excesso de sentimento. A tristeza dói pela mesma razão. Talvez a apatia me proteja. Afinal é indolor.
Indolor, intocável, inalienável, impenetrável. É a fortaleza: as muralhas são feitas de Razão e as torres de desinteresse e cansaço.

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