Altas teorias
Chega-se a um ponto da nossa vida em que não há tempo. Não dá para perceber se todos os relógios do mundo aceleraram ou se nós, ao crescer, apercebemo-nos de que o tempo não para nunca.
E portanto, nunca há tempo. No tempo que, de facto, temos, estamos tão exaustos de passar o dia, a vida, a correr, que só queremos, só conseguimos fechar os olhos.
Não tenho tempo para devanear. Mal tenho tempo para pensar. O vento gela-me a cara e os meus olhos fecham-se e eu caio num abismo escuro e profundo criado pela minha exaustão.
Vejo a vida por um periscópio. A vida dos felizes, dos inocentes, dos barulhentos e sorridentes. A vida livre e sem preocupações de todos eles, que ainda têm tempo e ainda têm com que gastar o tempo deles.
Vejo tudo isso sentada num banco de pedra que me congela o corpo lentamente e que não me protege do vento que abana musicalmente as árvores mais próximas. O meu ócio e a minha letargia atacam-me, obrigam-me a fechar os olhos, a ser dominada por uma frustração incendiária. A minha memória atraiçoa-me. Debaixo dos meus olhos dançam figuras, figuras que são só sombras minhas, que dançam e riem num espaço infinito, 1001 vezes.
Vejo tudo pelo meu espectro cansado e rabugento. Incluindo o vento que faz o meu cabelo dançar neste antro das memórias em que me sento. Ouço mil sussurros de palavras que já disse, que já cuspi, que já gritei, ainda naquele antro tão maravilhoso quanto irónico e desprezível.
Sinto uma vontade súbita de me rir. De me rir até não poder mais, até os meus pulmões me doerem, até o meu desconforto, a minha ansiedade e até a ironia passarem. Quero-me rir da piada, da tão imensa piada, que é o humor do destino. Quem saberia, há tanto tempo que eu ali estaria, naquele nojento sítio que tão indiferente me é neste momento, a pensar com um sorriso sarcástico e rancoroso nos lábios em todas as minhas façanhas passadas? Quem me dera poder dizer a um eu do passado isso mesmo. Quem me dera poder inflingir-lhe essa dor, quem me dera poder ver o quão destroçada isso a deixaria. Quem me dera ter sabido.
Um casal passa, ao longe, de mãos dadas e sorrisos comuns. A vontade de me rir era ainda maior. Quem me dera que eles soubessem. Quem me dera que a realidade se abatesse sobre eles como um edifício, que os despedaçasse. Vivem numa ilusão que eu, velha, racional e supostamente experiente, reconheço e odeio, com um odiar característico de quem não sabe o que é ódio. A ilusão de que nós, crianças ainda de fraldas (sendo eu uma criança já com rugas e reformada) sabemos o que é o amor. A ilusão de que seja quem for neste mundo sabe o que é o amor. A ilusão de que o amor existe. Como se pode pensar que o amor existe?! Na minha não tão sábia sabedoria, teorizo que o que existe é paixão. Paixão, que nos faz sentir nervosos, e com aquela sensação de borboletas na barriga. Paixão que não é mais que tensão sexual, causada pela outra pessoa ter alguns traços físicos e/ou psicológicos que nos agradam. Mas a paixão apaga-se, desvanece. E o que fica? O medo de estar sozinho, o companheirismo. Daí que existam longos casamentos e longas relações. Não por amor, mas sim por companheirismo. Por amizade, vá.
O amor não existe. E é por isso que aqueles que passavam por aquela rua que eu escrutinava com tédio e ódio em breve acabariam por perecer. Porque a paixão com que as suas mãos se tocavam é um fogo que é apagado com a mínima chuva.
E eu, rabugenta e velha não permitiria que alguém que não partilhasse das minhas olheiras de cansaço e do meu ódio se atravessasse no meu campo de visão. Levantei-me e virei-me para o sítio onde havia a sensação de altitude. O sítio para onde foram todas as minhas respostas evasivas e os meus olhares desiludidos. O sítio que amparou todas as minhas memórias e o sítio onde eu as deixei para morrerem, para sempre.
Fiz um trejeito de resignação. O ódio esvaiu-se de mim. Enquanto há tanto tempo eu teria ficado num estado de nostalgia impossível, limitei-me a morder o lábio inferior e a largar um ''lamento''. De facto, lamentava. Lamentava por mim, por um eu que estivera destroçado ao ponto de edificar um altar para todas as aquelas almas perdidas que são as minhas memórias. Lamentava por um eu que morreu, de uma morte lenta e escura, num estado de inconsciência e cegueira. Lamentava por um eu que sangrou tanto de desilusão que acabou por nunca estancar. Lamentava por um ele morto, também. E aí sorri, num ato reflexo de autotortura. Ele estava tão morto quanto esse eu, o eu que o queria. Essa simples ironia animou-me.
Voltei a virar-me para o casal apaixonado, que ainda não sairia daquela rua, da minha rua. Encolhi os ombros. Que diabo sabia eu? Não sabia, nem queria saber. Eles que encontrassem a sua desgraça dentro em pouco.
Comecei a andar, fugindo do vento e daquele lugar que nunca foi sagrado. Eles que encontrassem a sua desgraça. Eu, sabia, nunca mais encontraria a minha.
E portanto, nunca há tempo. No tempo que, de facto, temos, estamos tão exaustos de passar o dia, a vida, a correr, que só queremos, só conseguimos fechar os olhos.
Não tenho tempo para devanear. Mal tenho tempo para pensar. O vento gela-me a cara e os meus olhos fecham-se e eu caio num abismo escuro e profundo criado pela minha exaustão.
Vejo a vida por um periscópio. A vida dos felizes, dos inocentes, dos barulhentos e sorridentes. A vida livre e sem preocupações de todos eles, que ainda têm tempo e ainda têm com que gastar o tempo deles.
Vejo tudo isso sentada num banco de pedra que me congela o corpo lentamente e que não me protege do vento que abana musicalmente as árvores mais próximas. O meu ócio e a minha letargia atacam-me, obrigam-me a fechar os olhos, a ser dominada por uma frustração incendiária. A minha memória atraiçoa-me. Debaixo dos meus olhos dançam figuras, figuras que são só sombras minhas, que dançam e riem num espaço infinito, 1001 vezes.
Vejo tudo pelo meu espectro cansado e rabugento. Incluindo o vento que faz o meu cabelo dançar neste antro das memórias em que me sento. Ouço mil sussurros de palavras que já disse, que já cuspi, que já gritei, ainda naquele antro tão maravilhoso quanto irónico e desprezível.
Sinto uma vontade súbita de me rir. De me rir até não poder mais, até os meus pulmões me doerem, até o meu desconforto, a minha ansiedade e até a ironia passarem. Quero-me rir da piada, da tão imensa piada, que é o humor do destino. Quem saberia, há tanto tempo que eu ali estaria, naquele nojento sítio que tão indiferente me é neste momento, a pensar com um sorriso sarcástico e rancoroso nos lábios em todas as minhas façanhas passadas? Quem me dera poder dizer a um eu do passado isso mesmo. Quem me dera poder inflingir-lhe essa dor, quem me dera poder ver o quão destroçada isso a deixaria. Quem me dera ter sabido.
Um casal passa, ao longe, de mãos dadas e sorrisos comuns. A vontade de me rir era ainda maior. Quem me dera que eles soubessem. Quem me dera que a realidade se abatesse sobre eles como um edifício, que os despedaçasse. Vivem numa ilusão que eu, velha, racional e supostamente experiente, reconheço e odeio, com um odiar característico de quem não sabe o que é ódio. A ilusão de que nós, crianças ainda de fraldas (sendo eu uma criança já com rugas e reformada) sabemos o que é o amor. A ilusão de que seja quem for neste mundo sabe o que é o amor. A ilusão de que o amor existe. Como se pode pensar que o amor existe?! Na minha não tão sábia sabedoria, teorizo que o que existe é paixão. Paixão, que nos faz sentir nervosos, e com aquela sensação de borboletas na barriga. Paixão que não é mais que tensão sexual, causada pela outra pessoa ter alguns traços físicos e/ou psicológicos que nos agradam. Mas a paixão apaga-se, desvanece. E o que fica? O medo de estar sozinho, o companheirismo. Daí que existam longos casamentos e longas relações. Não por amor, mas sim por companheirismo. Por amizade, vá.
O amor não existe. E é por isso que aqueles que passavam por aquela rua que eu escrutinava com tédio e ódio em breve acabariam por perecer. Porque a paixão com que as suas mãos se tocavam é um fogo que é apagado com a mínima chuva.
E eu, rabugenta e velha não permitiria que alguém que não partilhasse das minhas olheiras de cansaço e do meu ódio se atravessasse no meu campo de visão. Levantei-me e virei-me para o sítio onde havia a sensação de altitude. O sítio para onde foram todas as minhas respostas evasivas e os meus olhares desiludidos. O sítio que amparou todas as minhas memórias e o sítio onde eu as deixei para morrerem, para sempre.
Fiz um trejeito de resignação. O ódio esvaiu-se de mim. Enquanto há tanto tempo eu teria ficado num estado de nostalgia impossível, limitei-me a morder o lábio inferior e a largar um ''lamento''. De facto, lamentava. Lamentava por mim, por um eu que estivera destroçado ao ponto de edificar um altar para todas as aquelas almas perdidas que são as minhas memórias. Lamentava por um eu que morreu, de uma morte lenta e escura, num estado de inconsciência e cegueira. Lamentava por um eu que sangrou tanto de desilusão que acabou por nunca estancar. Lamentava por um ele morto, também. E aí sorri, num ato reflexo de autotortura. Ele estava tão morto quanto esse eu, o eu que o queria. Essa simples ironia animou-me.
Voltei a virar-me para o casal apaixonado, que ainda não sairia daquela rua, da minha rua. Encolhi os ombros. Que diabo sabia eu? Não sabia, nem queria saber. Eles que encontrassem a sua desgraça dentro em pouco.
Comecei a andar, fugindo do vento e daquele lugar que nunca foi sagrado. Eles que encontrassem a sua desgraça. Eu, sabia, nunca mais encontraria a minha.
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