Era uma vez
Era uma vez uma menina. Se olhassem para ela, não veriam mais do que uma menina. Não veriam mais do que uma criança como todas as outras, que brincava, ria e dizia disparates.
E esta menina era uma criança como todas as outras. A diferença entre ela e as outras é que na sua cabeça haviam castelos e vitórias, todas destinadas a ela. Talvez isto não pareça diferente de todas as outras meninas por esse mundo fora, mas esta menina em particular não fazia as coisas por metade.
Os castelos e vitórias eram reais e bem delineados, ela já tinha decidido de que seriam feitos, como seriam feitos e tudo o que ela faria para o resto dos longos anos que seriam a sua vida.
E com o passar dos anos, estas ilusões não desapareceram. Os castelos não ruíram, as vitórias não foram atraiçoadas. A menina viveu a sua vida como decidira fazer, e como as suas já não controladas emoções diziam que ela devia fazer, independentemente de ser o melhor para ela ou não.
Com o passar dos anos, a menina acumulou tantos arrependimentos quantos era possível o seu já não tão pequeno coração aguentar. Mas não fazia mal, porque a vida avançava e ela conseguia esquecer-se, nem que fosse por uns momentos. Sempre fora boa a afogar a sua aguçada memória. Excelente a arrumar as suas dores nos baús mais recônditos da sua mente.
Ao fazê-lo, deixava de ser uma vítima. E, ao longo dos anos, ela passou de ser uma menina assustada, frágil, para uma rapariga forte que já não se deixava intimidar.
Podia ser apenas a maior representação da sua vida, mas era uma representação que a deixava de pé, que a fazia aguentar-se e sobreviver ao mundo que para ela parecia já absolutamente cruel. Mal sabia ela...
O problema de mentirmos a nós mesmos é que as mentiras acabam por se tornar a realidade. E quando dizemos que somos alguém vezes suficientes tornamo-nos nesse alguém.
A menina, agora rapariga, acabou por dar por si um poço infinito de amargura, raiva e insensibilidade. O excesso de juventude era contrabalanceado por uma velhice atroz, venenosa e rabugenta, que a consumia e a escondia, protegendo-a de realmente viver.
O problema de se viver debaixo de peles que não são a nossa é que a pele eventualmente tem de sair. Eventualmente a nossa pele expele a outra, farta de estar escondida debaixo de mentiras, mesmo que essas mentiras sejam já a verdade.
E, de facto, foi isso que aconteceu. Depois de anos de uma fortaleza impeditória, que a mantinha num caminho muito específico, que a proibia de uma vida inteira e que a impedia de sentir mais do que raiva, indignação e um profundo amor por ela própria, a fortaleza foi derrubada. E a sua pele verdadeira foi exposta.
A rapariga não conseguia estabelecer qual tinha sido o momento que tinha despoletado o fim da sua vida. Ou pelo menos, o fim da sua vida como ela sempre a tinha conhecido. Não conseguia ter a certeza do que é que derrubara a sua força demolidora e beligerante. Se tinham sido as avalanches de mudança, ou o amor incondicional com que se deparou.
A rapariga não se tinha deparado com muito amor ao longo da sua vida. Vivera absolutamente rodeada dele, portanto não o questionava, mas fora de casa não achava que ele existisse. Muitos meninos, rapazes e homens passaram pela vida dela. Muitos tinham tentado alcançá-la e ela não deixara, muitos ela tentara alcançar e dera-se o processo inverso e muitos mais houve em que simplesmente não havia alcance possível de nenhuma das partes.
Portanto, nunca experienciara o amor. Muitas tentativas dele fizera, até porque, como qualquer sonhadora, havia que melodramatizar tudo, ao ponto de não conseguir distinguir os factos do que fizera deles. Daí que achara ter encontrado o amor um milhão de vezes.
Até que descobriu que afinal não encontrara nada para além da sua própria imaginação. E, para encher o vazio que ela própria criara, ao tentar encontrar espaço onde não o havia, ela teve que crescer. Ou seja, o seu ego teve que aumentar, ao ponto de a suportar por inteiro.
De qualquer das maneiras, após anos de se agarrar a fantasias e de depois as largar e as enterrar no mais fundo de si, a rapariga deu pela sua vida a avançar.
Já não era a menina frágil, distraída, desastrada e vitimizada. Já não era a rapariga insensível, venenosa, brilhante, e forte, com o coração cheio de arrependimentos.
Era uma mulher. Em ponto pequeno, pelo menos. A passagem para maturidade não lhe doeu, afinal na sua cabeça já era mulher há anos. Portanto, ela não sabia exatamente o que lhe criou a dor, mas não fora o crescer.
Deu por si desastradamente apaixonada, pela primeira vez na vida. Nunca lhe tinha acontecido, amar alguém sem planear. Sempre planeara, sempre manipulara, sempre estivera no controlo. E, pela primeira vez na sua vida, não estava. No entanto, o problema de abrir o seu coração a uma entidade desconhecida, foi que essa entidade deixou-a exposta, e a sua verdadeira pele, que já andava a querer escapar da opressão das mentiras, foi completamente liberta.
A rapariga cética, brilhante, sarcástica, venenosa, controladora e forte, foi-lhe arrancada. E a sua verdadeira pele, pálida da falta de exposição, doente, fragilizada, fraca, sensível e irracional, mostrou-se. E a menina, a rapariga, a mulherzinha, deu por si uma pessoa completamente diferente da que se lembrava de ser.
A sua vida mudara mais do que a sua mente controladora a permitia controlar. Mudara para um novo sítio, com novas pessoas e com novos objetivos. Mudara para um compromisso que pela primeira vez na vida se viu a desejar que fosse eterno. Mudara para uma pessoa de que já não se lembrava, porque a enterrara debaixo de mentiras, de palavras dolorosas e de camadas enormes de pensamentos. Já não sabia quem era, e a pessoa que tinha vivido a sua vida não era a mesma que a vivia agora.
Estava numa vida que não tinha escolhido para si, mas que a pessoa que fingira ser escolhera para si. E não sabia se conseguia amara aquela vida.
A mulher, que pela primeira vez sentia dor verdadeira e não fingida pelo seu brilhante cérebro (talvez tivesse sentido dor verdadeira alguma vez, mas enterrara essa memória com todas as outras, nos baús sagrados), não sabia como lidar com ela. Nunca tinha sido um ser "sentidor". Era um ser pensador, controlador, racionalizador. Até o conflito na sua vida tinha sido quase orquestrado por si, quase imaginado por si.
Portanto, não sabia como lidar com a dor, o sofrimento, a sensação de estar completa e absolutamente perdida. Perdida na sua vida, perdida no seu corpo, perdida no seu lugar.
E, pela primeira vez, não conseguia simplesmente enterrar a sua dor. Não conseguia distrair-se dela, fingir que ela não existia, avançar como se não houvesse algo a estrangular-lhe o peito. E isso tornou-a doente. Talvez não estivesse realmente doente, mas a sua cabeça, sempre capaz de manipular tudo, dizia-lhe que estava. E talvez estivesse. Talvez o facto de finalmente ser humana e sentir fosse, para si, estar doente.
Mas a vida avançava, quer ela quisesse, quer não. Tornando-se mais pesada do que ela conseguia suportar. Talvez um dia ela voltasse a conseguir enterrar o que a magoava. Talvez não e o que a magoava acabasse por a enterrar.
De qualquer das maneiras, dava por si a não pensar tanto no futuro e no que faria. O futuro já estava demasiado marcado no seu cérebro esgotado e nas suas mãos cansadas. Já chegava, não queria pensar mais nele.
Queria antes viver. Conseguir voltar a respirar fundo, conseguir voltar a amar com fervor a figura que via no espelho, conseguir manter a esperança num mundo melhor. Queria viver com força. Queria voltar a ser racional, fechada e insensível, e principalmente forte, mas também queria ser louca. Queria ser o que fora e a pessoa que tinha fingido ser por tantos anos e que amava. Mas já não o era, e não sabia se era possível alguém voltar a ser o que foi.
A sua sanidade mental caía na decadência absoluta, e ela não sabia se havia como perseverar. Talvez não. E se assim fosse, que faria ela?
Entendeu que o seu problema é que era humana, pela primeira vez. Mas não há uma cura contra isso, e não seriam medicamentos ou pensamentos que a fariam tornar-se algo que não humano. Portanto, que podia fazer, se não deixar a vida fugir-lhe do controlo?...
Talvez tivesse sido esse o seu destino a vida toda... Ou talvez não.
E esta menina era uma criança como todas as outras. A diferença entre ela e as outras é que na sua cabeça haviam castelos e vitórias, todas destinadas a ela. Talvez isto não pareça diferente de todas as outras meninas por esse mundo fora, mas esta menina em particular não fazia as coisas por metade.
Os castelos e vitórias eram reais e bem delineados, ela já tinha decidido de que seriam feitos, como seriam feitos e tudo o que ela faria para o resto dos longos anos que seriam a sua vida.
E com o passar dos anos, estas ilusões não desapareceram. Os castelos não ruíram, as vitórias não foram atraiçoadas. A menina viveu a sua vida como decidira fazer, e como as suas já não controladas emoções diziam que ela devia fazer, independentemente de ser o melhor para ela ou não.
Com o passar dos anos, a menina acumulou tantos arrependimentos quantos era possível o seu já não tão pequeno coração aguentar. Mas não fazia mal, porque a vida avançava e ela conseguia esquecer-se, nem que fosse por uns momentos. Sempre fora boa a afogar a sua aguçada memória. Excelente a arrumar as suas dores nos baús mais recônditos da sua mente.
Ao fazê-lo, deixava de ser uma vítima. E, ao longo dos anos, ela passou de ser uma menina assustada, frágil, para uma rapariga forte que já não se deixava intimidar.
Podia ser apenas a maior representação da sua vida, mas era uma representação que a deixava de pé, que a fazia aguentar-se e sobreviver ao mundo que para ela parecia já absolutamente cruel. Mal sabia ela...
O problema de mentirmos a nós mesmos é que as mentiras acabam por se tornar a realidade. E quando dizemos que somos alguém vezes suficientes tornamo-nos nesse alguém.
A menina, agora rapariga, acabou por dar por si um poço infinito de amargura, raiva e insensibilidade. O excesso de juventude era contrabalanceado por uma velhice atroz, venenosa e rabugenta, que a consumia e a escondia, protegendo-a de realmente viver.
O problema de se viver debaixo de peles que não são a nossa é que a pele eventualmente tem de sair. Eventualmente a nossa pele expele a outra, farta de estar escondida debaixo de mentiras, mesmo que essas mentiras sejam já a verdade.
E, de facto, foi isso que aconteceu. Depois de anos de uma fortaleza impeditória, que a mantinha num caminho muito específico, que a proibia de uma vida inteira e que a impedia de sentir mais do que raiva, indignação e um profundo amor por ela própria, a fortaleza foi derrubada. E a sua pele verdadeira foi exposta.
A rapariga não conseguia estabelecer qual tinha sido o momento que tinha despoletado o fim da sua vida. Ou pelo menos, o fim da sua vida como ela sempre a tinha conhecido. Não conseguia ter a certeza do que é que derrubara a sua força demolidora e beligerante. Se tinham sido as avalanches de mudança, ou o amor incondicional com que se deparou.
A rapariga não se tinha deparado com muito amor ao longo da sua vida. Vivera absolutamente rodeada dele, portanto não o questionava, mas fora de casa não achava que ele existisse. Muitos meninos, rapazes e homens passaram pela vida dela. Muitos tinham tentado alcançá-la e ela não deixara, muitos ela tentara alcançar e dera-se o processo inverso e muitos mais houve em que simplesmente não havia alcance possível de nenhuma das partes.
Portanto, nunca experienciara o amor. Muitas tentativas dele fizera, até porque, como qualquer sonhadora, havia que melodramatizar tudo, ao ponto de não conseguir distinguir os factos do que fizera deles. Daí que achara ter encontrado o amor um milhão de vezes.
Até que descobriu que afinal não encontrara nada para além da sua própria imaginação. E, para encher o vazio que ela própria criara, ao tentar encontrar espaço onde não o havia, ela teve que crescer. Ou seja, o seu ego teve que aumentar, ao ponto de a suportar por inteiro.
De qualquer das maneiras, após anos de se agarrar a fantasias e de depois as largar e as enterrar no mais fundo de si, a rapariga deu pela sua vida a avançar.
Já não era a menina frágil, distraída, desastrada e vitimizada. Já não era a rapariga insensível, venenosa, brilhante, e forte, com o coração cheio de arrependimentos.
Era uma mulher. Em ponto pequeno, pelo menos. A passagem para maturidade não lhe doeu, afinal na sua cabeça já era mulher há anos. Portanto, ela não sabia exatamente o que lhe criou a dor, mas não fora o crescer.
Deu por si desastradamente apaixonada, pela primeira vez na vida. Nunca lhe tinha acontecido, amar alguém sem planear. Sempre planeara, sempre manipulara, sempre estivera no controlo. E, pela primeira vez na sua vida, não estava. No entanto, o problema de abrir o seu coração a uma entidade desconhecida, foi que essa entidade deixou-a exposta, e a sua verdadeira pele, que já andava a querer escapar da opressão das mentiras, foi completamente liberta.
A rapariga cética, brilhante, sarcástica, venenosa, controladora e forte, foi-lhe arrancada. E a sua verdadeira pele, pálida da falta de exposição, doente, fragilizada, fraca, sensível e irracional, mostrou-se. E a menina, a rapariga, a mulherzinha, deu por si uma pessoa completamente diferente da que se lembrava de ser.
A sua vida mudara mais do que a sua mente controladora a permitia controlar. Mudara para um novo sítio, com novas pessoas e com novos objetivos. Mudara para um compromisso que pela primeira vez na vida se viu a desejar que fosse eterno. Mudara para uma pessoa de que já não se lembrava, porque a enterrara debaixo de mentiras, de palavras dolorosas e de camadas enormes de pensamentos. Já não sabia quem era, e a pessoa que tinha vivido a sua vida não era a mesma que a vivia agora.
Estava numa vida que não tinha escolhido para si, mas que a pessoa que fingira ser escolhera para si. E não sabia se conseguia amara aquela vida.
A mulher, que pela primeira vez sentia dor verdadeira e não fingida pelo seu brilhante cérebro (talvez tivesse sentido dor verdadeira alguma vez, mas enterrara essa memória com todas as outras, nos baús sagrados), não sabia como lidar com ela. Nunca tinha sido um ser "sentidor". Era um ser pensador, controlador, racionalizador. Até o conflito na sua vida tinha sido quase orquestrado por si, quase imaginado por si.
Portanto, não sabia como lidar com a dor, o sofrimento, a sensação de estar completa e absolutamente perdida. Perdida na sua vida, perdida no seu corpo, perdida no seu lugar.
E, pela primeira vez, não conseguia simplesmente enterrar a sua dor. Não conseguia distrair-se dela, fingir que ela não existia, avançar como se não houvesse algo a estrangular-lhe o peito. E isso tornou-a doente. Talvez não estivesse realmente doente, mas a sua cabeça, sempre capaz de manipular tudo, dizia-lhe que estava. E talvez estivesse. Talvez o facto de finalmente ser humana e sentir fosse, para si, estar doente.
Mas a vida avançava, quer ela quisesse, quer não. Tornando-se mais pesada do que ela conseguia suportar. Talvez um dia ela voltasse a conseguir enterrar o que a magoava. Talvez não e o que a magoava acabasse por a enterrar.
De qualquer das maneiras, dava por si a não pensar tanto no futuro e no que faria. O futuro já estava demasiado marcado no seu cérebro esgotado e nas suas mãos cansadas. Já chegava, não queria pensar mais nele.
Queria antes viver. Conseguir voltar a respirar fundo, conseguir voltar a amar com fervor a figura que via no espelho, conseguir manter a esperança num mundo melhor. Queria viver com força. Queria voltar a ser racional, fechada e insensível, e principalmente forte, mas também queria ser louca. Queria ser o que fora e a pessoa que tinha fingido ser por tantos anos e que amava. Mas já não o era, e não sabia se era possível alguém voltar a ser o que foi.
A sua sanidade mental caía na decadência absoluta, e ela não sabia se havia como perseverar. Talvez não. E se assim fosse, que faria ela?
Entendeu que o seu problema é que era humana, pela primeira vez. Mas não há uma cura contra isso, e não seriam medicamentos ou pensamentos que a fariam tornar-se algo que não humano. Portanto, que podia fazer, se não deixar a vida fugir-lhe do controlo?...
Talvez tivesse sido esse o seu destino a vida toda... Ou talvez não.
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